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Incêndios

Wajdi Mouawad, nascido no Líbano, em 1968, teve de abandonar aos 8 anos sua terra natal, devido à guerra civil que se instaurara no país. Mouawad foi morar, então, na França por um tempo. Mas, acabou por se estabelecer no Canadá, em 1983. 
 
Escritor e diretor, Mouawad criou com Isabelle Leblanc sua primeira companhia de teatro, tendo, depois, em 2005, fundado mais dois grupos teatrais, um em Quebec e outro na França. Ainda em 2005, recusou o prêmio Moliére, pois não concordava com a indiferença dos diretores contemporâneos de teatro em relação aos autores vivos.
 
Além de dirigir seus próprios textos, Mouawad também montou peças de Shakespeare, Cervantes, Irvine Welsh, Frank Wedekind, Pirandello e Tchekhov. Atualmente, dedica-se a levar aos palcos sete tragédias de Sófocles.
 
Em Incêndios, a peça que representa sua produção mais forte, e isso, dentro de uma tetralogia de contornos matemáticos, Wajdi Mouawad estabelece um jogo com o número quatro, sendo Incêndios, a segunda parte desta tetralogia, uma peça que tem, por sua vez, sua divisão em quatro partes. 
 
Ao grupo de teatro que criou na França, Mouawad deu o nome de “ao quadrado da hipotenusa”, e este será o grupo com o qual trabalhará na montagem da peça Incêndios. Assim como nas peças de Shakespeare, Incêndios não tem qualquer limitação de espaço e tempo. Tanto há o deslocamento espacial abrupto, como diálogos simultâneos em tempos diferentes. A ruptura espaço-temporal em Incêndios é radical, sem perder em precisão e naturalidade.
 
Incêndios, como a segunda parte de uma tetralogia iniciada com a escrita e a encenação de Litoral, em 1997, não é uma continuação narrativa desta. Incêndios retoma a reflexão sobre a questão da origem. Assim como Litoral, Incêndios nunca teria nascido sem a participação dos atores. O texto, tal qual em Litoral, foi escrito ao longo dos ensaios dos atores. 
 
A contribuição dos atores para a caracterização dos personagens da peça foi fundamental. Mouawad foi construindo a peça no sentido de revelar os atores através de seus personagens, e vice-versa. O texto se construiu pela reunião dos desejos dos atores pelas mãos de Mouawad. O espetáculo estreou em 14 de março de 2003, no Canadá, com o texto e a direção, por óbvio, de Wajdi Mouawad. Aqui no Brasil, por sua vez, Incêndios estreou no Rio de Janeiro, no Teatro Poeira, em 19 de setembro de 2013. O projeto foi idealizado por Felipe de Carolis, e agora está em cartaz com direção de Aderbal Freire-Filho, com a atriz Marieta Severo fazendo a personagem principal da peça, a mãe dos gêmeos Jeanne e Simon, a sofrida Nawal Marwan.
 
A peça começa com o tabelião Hermile Lebel, amigo de Nawal Marwan, que recebe os gêmeos Jeanne e Simon Marwan. Ele está com o testamento da mãe deles, Nawal Marwan, e a abertura do testamento é feita na presença de seus dois filhos. O tabelião tenta cumprir a vontade de sua amiga que já estava morta, e que tinha um “enigma-bomba” para jogar nas mãos de seus dois filhos, ambos com 22 anos de idade. Dentre outras determinações no testamento, havia dois envelopes, um para Jeanne entregar ao pai deles, e outro para Simon entregar para o irmão deles. 
 
Simon resiste aos pedidos da mãe, e joga a culpa nela por ter abandonado a ele e a irmã. Jeanne, no entanto, quer resolver o mistério, tal como em suas soluções matemáticas. Pois, Jeanne dava aulas de matemática, e, por sinal, todo o mistério da peça Incêndios se dá em torno de uma trama que se fecha como uma solução imprevista, até mesmo dentro da própria matemática. Tal desenlace não será revelado aqui, pois a chave do mistério que leva à conclusão da peça é uma das coisas mais viscerais já imaginadas para o fim de uma estória. Dado isso, abro aqui apenas os determinantes da trama, mas não seus fechamentos.
 
Intercala-se, na peça, a trama atual dos gêmeos, com a história passada de Nawal Marwan. A temporalidade, na peça, é dividida no mesmo espaço cênico, aonde os diálogos se dão simultaneamente nesta divisão, e até a própria divisão, muitas vezes, é aparentemente transgredida pelas vozes plurais que surgem nos diálogos. As vozes dos personagens são encarregadas de criar uma dinâmica ensurdecedora e perturbadora, mas a atenção é mantida pela tensão do espaço em que se dá a ação, o espaço cênico é compreendido facilmente, apesar de seu caos aparente. Também há uma dinâmica matemática nos diálogos criados por Mouawad na peça Incêndios, nada está fora do lugar, daí a sua compreensão nada caótica.
 
Na peça, Nawal Marwan conhece Wahab, o qual será pai de seu primeiro filho, e este filho será, por circunstâncias da vida de Nawal, criado longe dela. O franco-atirador Nihad, figura que se torna central na peça, é como um ponto fora da curva, mas que será o centro do círculo trágico em que se fecha toda a trama de Incêndios. Seu drama e sua tragédia, junto com a sua comicidade, são o desvio e o encontro em que se dá o desenlace fatal de toda a peça. Nihad aparece no espaço cênico como um contraponto cômico de uma tragédia que mantém a tensão de toda a peça. Nada ali está fora do lugar, como já disse. Nihad segura um fuzil M16, com um walkman nos ouvidos, e toca o fuzil, qual uma guitarra, ao som de “The Logical Song” do Supertramp. 
 
Abu Tarek, por sua vez, é o carcereiro que estupra Nawal na prisão, pois ela passa muito tempo presa, depois de ter sido capturada por milicianos, e se torna, na prisão, a mulher que canta. E é na prisão que nascem os gêmeos Jeanne e Simon Marwan. O curioso é que Nawal terá dois momentos na peça, uma como a mulher que canta, e outro de um silêncio absoluto. A tensão da prisão e a violência de Abu Tarek, refletem no seu canto que é espanto de dor, e no seu silêncio que é a dor dentro de si. Esse é o destino de Nawal Marwan que, por sua vez, só poderá ser enterrada com a face virada para o sol, ao ter os gêmeos, seus dois filhos, junto com o irmão e o pai, chave do mistério. 
 
A peça Incêndios teve uma versão para o cinema, em 2010. O diretor Denis Villeneuve conseguiu uma proeza, o filme é um dos melhores já feitos, na minha opinião. Ler a peça, ver a peça montada aqui no Rio de Janeiro, e depois rever este filme incrível, pois já tinha visto esta obra-prima no cinema, me fez entender que não foi à toa que o filme foi indicado ao Ooscar de melhor filme estrangeiro. O filme dirigido por Denis Villeneuve faz uma grande honra à peça de Wajdi Mouawad. O tema é forte, e tudo que decorreu desta estória, tanto o filme, como, agora, a montagem da peça no Brasil, tudo isso concorre para se fazer uma grande justiça a uma estória que não se vê todo dia e nem em qualquer lugar. 
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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