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​Missa profana

A toalha branca voava no ar como uma bailarina do Quebra-nozes sem as sapatilhas de cetim

Sagrada é a hora da refeição, diz o pai em tom solene, e na hora de repartir o pão, fica sempre com o maior pedaço. Lambuzado de manteiga meio rançosa. Para as filhas, pão seco. Manteiga tem calorias, muita lactose, dá espinha no rosto. Ou tem excesso de gordura insaturada. Se inspira no vocabulário do YouTube para os sermões diário. Doutor implacável.

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Pôr a mesa era tarefa da mais velha, Arlina. A toalha branca voava no ar como uma bailarina do Quebra-nozes sem as sapatilhas de cetim. Arlina calçava umas sandálias surradas, o couro das tiras descascado, já nem se percebia que cor tiveram. O solado rasgado do lado esquerdo – Dança, Arlina, dança! Pobre criança magricela, sempre sonhando com uma fatia de pão lambuzada de manteiga. Mesmo rançosa.

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Berinda, a segunda filha, traz a travessa de sopa fumegando. Pousa-a sobre a mesa como um pássaro de asas amplas – a toalha desbotada e puída, já nem se percebe a estampa de anjos azuis, graças aos excessos do batismo com água sanitária. Damos graças a Deus por essa refeição frugal mas saudável! recita o pai, e enche o prato com a sopa rala, inhame ou aipim, uns parcos raminhos verdes de salsa ou coentro. O que sobrar distribui entre as filhas. Labuto de sol a sol, como um escravo hebreu no Egito, e só tem sopa para o jantar. Vão dormir cedo para não ter fome outra vez.

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A terceira filha, Carlucia, tira a mesa. Ou melhor, com reverência, retira de sobre a mesa os pratos vazios – quase limpos, porque ninguém desperdiça uma gota sequer da santa sopa. A mesa continua no mesmo lugar, indiferente ao que ponham diariamente sobre ela. A travessa volta para a prateleira da cozinha, aguardando a consagração do alimento no dia seguinte – de qual sabor?

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O ritual do pão repartido todas as manhãs. Água limpa e fresca nos copos. Não vão se atrasar para a escola. Comam tudo que servirem no lanche, que é pecado desperdiçar comida. O dinheiro é curto mas o coração é grande. Se as colegas do lado largarem restos nos pratos, peguem as sobras e comam com respeito, que é sacrilégio jogar comida fora. Com o que ganho na obra, é mesmo um milagre comerem o pão de cada dia.

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Domingo tem churrasco de salsicha no quintal, que a picanha entrou na lista dos pecados capitais. O pai junta uns tijolos, improvisa uma churrasqueira. Os amigos cuidam da cerveja, que pobre também tem direito a uma epifania. As crianças não são convidadas. Com a melhor roupa, bem lavada e mal passada, as ABCs – como são chamadas na congregação – vão pra igreja ajudar no lanche dos mendigos – poucos são chamados e muitos comparecem – assim podem comer as sobras. Que o senhor seja louvado!

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