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​Morre quem quer

Os vizinhos reclamando, elemento suspeito tem sido visto rondando o edifício

Vieram os difíceis anos da Covid, e mesmo assim as pessoas se apaixonavam. Com tantos transtornos que a pandemia nos causou, não se sabe de casos amorosos que não tenham resistido aos estragos do vírus devastador. Foi o que aconteceu com Mauro e Mara – tão jovens e bonitos quanto as faces das revistas de moda. Em sendo jovens, se conheceram em festinha de aniversário na casa de algum amigo comum, e um outro vírus, desta vez benigno, os assaltou – o amor tem dessas coisas, ataca quando e onde menos se espera.

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E tudo teria corrido bem, a menos que as faces dê errado. Mauro residia em Miami e passava férias em Vitória. O clima ajudou e deu praia todos os dias, eles passavam todo o tempo juntos e a afeição foi se consolidando, até que…decretado o lockdown, os pais da menina trancaram portas e janelas – ninguém sai nem entra. Mara se desespera, e o namorado? A mãe não se comove, “Não podemos correr riscos”. Pai e mãe passaram a trabalhar em casa, o supermercado era feito online, e Mara chorou todas as lágrimas possíveis, sem no entanto comover os guardiães da porta de casa.

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O namoro agora era de janela – ela de dentro, ele de fora – todos os dias o garoto passando pra lá e pra cá.. e lá vem o porteiro do prédio. Os vizinhos estão reclamando, um elemento suspeito tem sido visto rondando o edifício… O rapaz mostra documentos, não sou elemento nem suspeito, e não preciso roubar ninguém. Alguns moradores entenderam e sofreram juntos – quando dava a hora do rapaz fazer a ronda, iam todos pra janela dar apoio moral. Uns desenhavam corações nas vidraças, outros escreviam mensagens do tipo – Mauro e Mara, estamos com vocês! Ou, o amor tudo pode!

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Mas nem todos. O velho ranzinza do primeiro andar implicou com o namoro à distância – Namoro coisa nenhuma! Moro sozinho no térreo, e esse pivete passando fazendo ronda a noite toda! Vou ser o primeiro a ser assaltado. Os pais da menina também não estavam gostando, Esse rapaz é um irresponsável andando pelas ruas numa situação de recolhimento domiciliar. Não pode ser confiável! Mas pai, a gente se gosta…Ele não tem família que o oriente? E foi estabelecido um novo horário de visitas – apenas durante o dia, por 15 minutos, duas vezes ao dia. Apesar das restrições o amor resistiu, e os jovens pombinhos passavam o dia nos celulares, foto pra lá, foto pra cá, mensagens cifradas, suspiros autênticos.

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E a tênue esperança…quando a pandemia acabar…quando inventarem uma vacina salvadora…quando a vida voltar a ser o que era. Antes que as coisas boas acontecessem, deu a hora do rapaz voltar pra casa. Infelizmente as empresas aéreas funcionavam normalmente, embora com aviões vazios, e o patrão americano disse que não paga empregado virtual, tem que comparecer diariamente ao local de trabalho ou é demitido. Mandou instalar paredes de vidro separando os funcionários, e fornece máscaras faciais da marca Morre quem quer.

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Se tristes já estavam, mais tristes ficaram os dois pombinhos com a partida iminente. Não vá, ela pedia, que lá está pior do que aqui. É um bom emprego, se perco, a gente não pode se- casar…e o monstro rondando o mundo, com garras afiadas se infiltrando por toda parte, cruel e sanguinário! Puxando a malinha de bordo, Mauro refaz pela última vez o percurso até a Diogenes de Noronha, onde ela mora. Mas não pode parar nem entrar naquele prédio – novas regras do síndico desalmado em vida. Tão perto mas tão distante! Mara atrás da vidraça, lágrimas molhando o rosto ao acenar o último adeus. Mauro chora também.

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