Transito, logo existo
Imaginemos um mundo perfeito, onde o Natal – a festa maior do cristianismo – seja respeitado por todos. Infelizmente isso não acontece, e os planos de Bruno para passar o Natal com a família no Brasil não foram respeitados – As necessidades da empresa são mais importantes que eventos religiosos, disse o gerente. Portanto, Bruno viajou no dia 24 de dezembro. Tendo uma família em Miami e outra em Vitória, o Natal nos dois hemisférios ficou prejudicado.
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Nem lá nem cá, diriam os poetas das mágoas humanas – Bruno embarca em Miami antes da ceia na casa da avó no dia 24 e chega em Vitória depois do almoço natalino na casa da outra avó. Coisas de duas ou três nacionalidades, que o mundo cada vez encolhe mais e acolhe menos. Naturalmente outras comemorações acontecerão nos dois lados do planeta para compensar a ausência, mas a tradição, essa velha que dorme em coma mas ainda respira, fica prejudicada.
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O avião levanta voo na hora marcada, o que já é um milagre. Com suas minipoltronas vazias, mas não vazio. Bruno se estica e dorme – trabalhou o dia inteiro, mesmo sendo Natal. Quase perdeu o jantar – a atendente de bordo o acorda, convidando para ir se acomodar na primeira classe. Milagre de Natal? Comodidade: todos os passageiros cabem na primeira classe e fica mais fácil para os assistentes de bordo darem a devida assistência. Afinal, é Natal.
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O jantar foi melhor do que o esperado, com direito a champanhe e eggnog. O clima ficou cordial, cada um contando a razão de viajarem numa data tão ingrata – O preço mais barato, disse a maioria. A garota sentada ao lado do Bruno, com a cara emburrada do grinch na camiseta – cochichou, Natal em família é muito chato, uma choradeira só, ela ri, Ao invés de usarem essa reunião para agradecer pelos que estão vivos ficam chorando pelos que se foram. Mentalmente Bruno agradece ao Papai Noel por não ter choradeira nos seus dois natais. E se consola: Transito, logo existo.
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E quando menos se espera o destino destempera – O aeroporto de Brasília está interditado, vamos fazer um pouso de emergência em Manaus, informa o piloto. A jovem com a camiseta do grinch resmunga, Xi, mais choradeira, e ri. Os demais passageiros não acham graça. Interditado por quê? Muito calor, todos os políticos foram passar o natal nas bases. Sem passageiros, os voos foram cancelados. Nós não somos passageiros? Um viajante mais irritado se irrita, quer bater no piloto. Os outros o acalmam. É Natal, cara!
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O hotel cinco estrelas organiza uma ceia de Natal mas Bruno e a garota preferem ir ver o encontro das águas. Ela trocou de camiseta, essa agora tem a cara risonha do Papai Noel. Depois eles foram comer tambaqui na brasa e visitar uma autêntica aldeia indígena, onde os índios falavam inglês: pensando que os turistas eram americanos. Depois foram colher castanhas do Pará na floresta, que evoluíram para castanhas do Brazil. Depois foram ver um show do Elton John no Teatro Amazonas. Foi-se o Natal, e eles nem perceberam.