Os carros passando, pedestres desviando, e a flor se formando – primeiro uma tênue folhinha, duas, três…depois um botão, minúsculo, ninguém percebeu que ali, na rachadura do asfalto quase imperceptível, algo de belo e inusitado poderia nascer. Chuva, sol, ventos brandos e vendavais, monóxido de carbono. Exércitos de formigas. Pés apressados – Olha o sinal, vai abrir! Uma freada brusca, um grito – o quinto acidente de hoje nesta rua.
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Senhora, vou ajudá-la a atravessar essa avenida perigosa. A jovem bem-intencionada pega-lhe o braço, Vamos! Com um safanão, Florbela afasta a mão protetora: Obrigada, não preciso. Sinal verde – Florbela vai adiante, a jovem bem-intencionada fica para trás. Passos apressados, pés desviando – a flor se formando, se abrindo devagar, na busca atávica pela luz do sol. Ao chegar em casa, Florbela desinfeta o braço: em tempos de pandemia não há tempo para gentilezas.
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O medidor de poluição que a prefeitura instalou em cada esquina – RESPIRAR / RESPIRAR COM CAUTELA / NÃO RESPIRAR – está sempre no vermelho: não respirar é fundamental. Em vez das máscaras contra o vírus a que já nos acostumamos, vem aí a máscara-escafandro – estamos afogando no ar poluído. Enquanto isso, no meio do caminho tinha uma flor, uma flor brotou solitária-solitária no meio do caminho.
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A flor abrindo seu leque de pétalas coloridas perfeitamente iguais, gloriosa, vencedora. Florbela viu a flor, fotografou e mandou para o jornal – Com tanta poluição, com tanta pressa e descaso pelo meio ambiente, ainda há esperança para um mundo melhor. No entanto, tal como aconteceu com a jovem bem-intencionada, a mensagem de Florbela foi mal interpretada. Choveram protestos. Uma flor no meio do caminho é um perigo para os motoristas, uma ameaça aos pedestres incautos! Um risco a mais para a vida dos cidadãos que pagam os impostos. Deixam de ser cidadãos se não pagam?
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Nesses tempos em que a vida balança sobre fios tênues, uma flor brotou no meio do caminho, exibindo ao sol e aos transeuntes sua persistência. Os grupos de vigilância rodoviária conclamam às autoridades: Removam a flor! Florbela manda recado: Removam os carros, que flor não polui nem mata. Carros não matam, rebatem os primeiros, Quem mata é o motorista. Mas se os pedestres não se intrometessem na frente deles, também não morreriam.
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Indiferente aos embates acirrados na TV e nos jornais, nas mesas de botecos e nas redes sociais, a flor continuou exibindo sua beleza colorida aos passantes – consequentemente engarrafando o trânsito. Tempos de eleição, e o debate chegou ao vale-tudo dos palanques – Se for eleito mandarei retirar a flor! grita um. Se for eleito protegerei a flor! grita Florêncio, o candidato da oposição, prometendo criar leis que defendam as flores, onde quer que nasçam.
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O do-contra zomba do adversário: Na sua gestão as ruas vão virar jardins. E os carros, onde vão circular? Florêncio: Que circulem pelas fazendas que o ilustríssimo adquiriu com o dinheiro de propinas. No meio do caminho, a flor se diverte com os debates, e decide não morrer. Defendendo a flor Florêncio ganhou a eleição e mandou desviar o trânsito. A flor continua no meio do caminho – um sorriso gentil amenizando a indiferença do asfalto. E nenhum outro acidente foi registrado nessa rua desde que a flor surgiu. Cuidando da flor, Florbela viu Florêncio – e seu coração floriu…