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O beletrista de South Beach

Após longas confabulações, me pergunto onde se meteram o leiteiro e o verdureiro, que nesses tempos de quarentena viriam bem a calhar

Tijela de açaí em South Beach

O beletrista existe, embora há muito não o veja. Purista por natureza e exigência do ofício, a mudança para Miami com livros e monóculos não lhe foi propícia. Deleitando-se nas areias de South Beach, encontra por puro acaso o Amanuense Belmiro, cujo ofício já a ninguém interessa. Quanto ao Juiz de Paz, é outro que sumiu dos compêndios ortográficos. Com a economia de espaço na imprensa, hoje só procuram o juiz de pequenas causas. Quem se lembra de ter jamais se encontrado com algum desses? O último que conheci largou a família e se amasiou com a ama de leite do pimpolho. 

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Após longas confabulações, me pergunto onde se meteram o leiteiro e o verdureiro, que nesses tempos de quarentena viriam bem a calhar. Nadando contra a maré, as velhas parteiras de antanho estão em alta. Voltaram à prática, dividindo consultório e ala de hospital com obstetras e ginecologistas. A gestante chega para a consulta marcada e a atendente informa, O doutor foi atender um parto surpresa, vai demorar. A Midwife (digo, parteira) pode te atender agora. A gestante se assusta: Como assim, parto surpresa? Não contaram pra coitada que estava grávida?

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Detalhista perspicaz e missivista contumaz, o beletrista estuda as belas letras. Mas como cultivar o purismo do latim morando em South Beach? Transierunt aquis moventur et non molendini. Caso você tenha esquecido o latim que aprendeu no ginásio: águas passadas não movem moinho. As únicas palavras que ele cultiva em inglês são Sorry e Thank you, o que indica boa educação. Para comer pede um número qualquer do menu – # 5 para hamburgers. Pizza não conta, porque se tornou palavra universal. Para cumprimentar as pessoas fala Good morning, não importa se é dia ou noite. Na ladainha diz Amém e Aleluia, no cinema tampa os ouvidos e dorme na poltrona acolchoada e reclinável.

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Os ouvidos apurados do beletrista são assaltados continuamente por uma cacofonia de sons nada ortodoxos. Os vizinhos de porta vieram da China, e a velha mãe cantonesa briga com os filhos, porque não exigem que os netos falem mandarim: Inglishi só na escola; como vão falar com os ancestrais na China? Mas tem outra família chinesa no outro lado da rua que não entende o que eles falam. Padhna, a recepcionista do Clubhouse, veio da Índia e fala hindi. O condomínio ao entardecer e um arco-íris de coloridos saris, mas poucos indianos conseguem manter um diálogo inteligível: a Índia tem 22 línguas oficiais, fora os dialetos.

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Mr. Blanch, o velho jamaicano do primeiro andar só fala creole. O entregador da Amazon Prime veio de Barbados e fala creole, mas os dois não se comunicam. Como na China e na Índia, há centenas de variações do creole poluindo os ouvidos do beletrista na orla da piscina. E embora o creole seja similar ao francês, Mr. Blanch e o entregador da Amazon – que passa no prédio a cada quinze minutos – também não se comunicam com o casal francês que faz cooper toda manhã na trilha em volta do lago. Tudo confuso demais para um beletrista castiço.

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Panitino, o italiano do segundo bloco canta O’ Sole Mio na varanda todas as manhãs, para celebrar o nascer do sol. Ele chama a esposa la più bella, e os vizinhos maldosos dizem que ele precisa trocar os óculos. Sole em italiano é sol, em espanhol é sozinho. Ou único: quem ainda canta Solamente una vez? Ao entardecer Panitino grita na varanda que os americanos deviam ser proibidos de fazer pizza: Continuem com seus hambúrgueres e hot dogs, mas não desmoralizem uma tradição italiana, orgulho nacional. Panitino já foi mafioso, hoje é dono de pizzaria. Plagiando Sêneca, o beletrista proclama: Errare humanum est, perseverare autem diabolicum… mas mesmo um beletrista desavisado continua errando em todas as línguas.

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