Quando a verdade assume tantas faces que acaba perdendo a importância
A partir do movimento político de derrubada do governo Dilma Rousseff, em que foram utilizadas as mais diversas formas de convencimento quanto a um suposto cometimento de crime burocrático, intitulado “pedaladas fiscais”, impulsionado pelo movimento jurídico-midiático de endemonização, não de uma pessoa ou grupo, mas de um pensamento político intitulado “esquerda”, estigmatizado por esse mesmo movimento como “os comunistas”, a população do nosso país passou a ser majoritariamente dividida em dois grupos, os comunistas e os anticomunistas.
A meu ver, a pior consequência deste fato foi a quebra da principal regra do jogo político democrático-partidário, que é a eleição por voto direto, como garantia ao eleito do direito de cumprimento do mandato. Uma vez que o convencimento quanto ao crime não foi claramente convincente, e que por isso popularizou o debate político, jurídico e ideológico, a parcela que se convenceu da necessidade do impeachment e a que não se convenceu – ressaltemos aqui a utilização das redes sociais instrumentalizadas como ferramentas de propagação ideológica, sem escrúpulos e sem compromisso com a verdade – passaram a formar campos distintos e irreconciliáveis, que se estendem até hoje, sem sinalização de passar.
Poderíamos dizer que essa popularização dos debates de alto nível intelectual, como o político e o jurídico, se tivessem sido conduzidos de forma decente e honesta, visceralmente ligados ao procedimento ético e responsável, seria extremamente positiva para o amadurecimento da população brasileira, mas o que assistimos foi muito diferente.
Uma vez estabelecido “o lado”, os argumentos já não importam mais e, a partir daí, qualquer premissa utilizada, até mesmo para a definição do lado de cada um, poderia, por ele mesmo, permanecer ou ser derrubada se abonasse ou não a ideologia daquele lado já definido. Qualquer entendimento, por mais raso que seja, sobre argumento ou sua função para o convencimento, se perdeu.
O Brasil não conseguiu mais superar o momento eleitoral e mergulhou numa polaridade política e social com gravíssimas consequências para nossas vidas. Até por que essa polarização passou a compor, não só o debate político, mas todo o debate nacional.
Mesmo nas instituições, onde pressupomos um debate impessoal, racional e probo, qualquer declaração ou posicionamento adotado é imediatamente confrontado a essa polaridade, bastando sua “localização” na dualidade, para ser considerado verdadeiro ou falso.
Essas evidências se concretizam, por exemplo, pelo discurso fundamentalmente religioso, uma vez que a eleição presidencial se deu com o jargão “Deus acima de todos”, o que nos retorna ao teocentrismo da idade média e suas drásticas consequências humanísticas. Também pelo moralismo, desvinculado da moralidade, que impõe um modelo único de família, tradição e propriedade, além do falso e perigoso nacionalismo, com o jargão “Brasil acima de tudo” e, por fim, não por falta de mais evidências, mas pela concisão do discurso, o “combate à corrupção” como argumento para o uso de qualquer método.
Já as consequências estão visíveis na administração das crises.
Na saúde: desde a destruição, por questões ideológicas, do programa mais médicos, que atendeu as comunidades desassistidas, até o argumento de o isolamento social ser uma estratégia de oposição, chegando a insinuação de que as mortes são irrelevantes a não ser como forma de desgaste do governo.
Na economia, com o discurso da ignorância científica sobrepondo a preservação da vida pelo direito ao trabalho e manutenção dos lucros.
Na política, com o desvelamento das intenções em relação à pessoalidade, mesmo contradizendo o próprio discurso, como no enfraquecimento progressivo dos organismos de controle da corrupção como no caso, inicial e gritante, da retirada do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Justiça, até a saída do Moro, até então estandarte da moralidade do governo, em prol da proteção de interesses pessoais e familiares do presidente Jair Bolsonaro, e ainda pior…
Na ética, onde as críticas se dão pelo comportamento contrário e também favorável, desde que o resultado seja condizente com seus ideais, como explanado em todos esses casos citados.
Enfim, todas essas contradições criam um clima de irracionalidade que favorece os desmandos, dando espaço para a retórica sofista, com a dissolução da verdade em prol do argumento conveniente.
Everaldo Barreto é professor de Filosofia