Uma interpretação anômala do Artigo 142
A organização golpista, segundo as investigações, foi separada por núcleos, e o indiciamento de Bolsonaro e de outras 36 pessoas revelam um cenário no qual o golpe de Estado esteve muito próximo de se efetivar no final de 2022. Por fim, a Polícia Federal (PF) deu por encerrada as investigações do caso, com a entrega do relatório à Procuradoria-Geral da República (PGR).
No relatório da Polícia Federal, constam documentos à caneta que explicam como funcionaria a operação, incluindo um esboço intitulado Operação 142 encontrado na sede do Partido Liberal (PL), na mesa do coronel Flávio Botelho Peregrino, que era o então assessor do general Braga Netto, candidato a vice-presidente da chapa de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.
O título deste documento se refere ao artigo 142 da Constituição Federal. E aqui cabe uma rápida recapitulação da polêmica que girou em torno deste artigo da Carta Magna da Nova Democracia no governo anterior, que representou tanto um hiato no conceito de nova democracia e redemocratização do país, como sobretudo um retrocesso nas conquistas democráticas e ameaça institucional que agora se confirmaram com o que vem sendo devassado no que ocorria no fim de 2022.
A Constituição Federal de 1988 submeteu as Forças Armadas aos poderes constitucionais e construiu uma relação de neutralidade entre estas e a política. Por conseguinte, sob a nova ordem constitucional, houve a incorporação dos três comandos das forças (Exército, Marinha e Aeronáutica) à estrutura do Ministério da Defesa, sob a direção de um ministro civil.
O amadurecimento institucional da redemocratização passou, portanto, pela mudança das relações civis-militares, com o afastamento dos militares da política e de orientações de governo, e obedecendo à ordem constitucional, isso é, com as Forças Armadas como um aparelho de Estado e não de governo. A democracia liberal criava, então, uma nova cultura de atuação estritamente profissional e constitucional por parte dos oficiais das três forças.
Com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, logo que seu governo começou, tivemos um retrocesso nesta profissionalização das Forças Armadas, pois alguns dos órgãos ministeriais do novo governo passaram a ter a presença de militares, com o Ministério da Defesa deixando de ser ocupado por civis e voltando ao comando de generais, e com influência importante nos rumos do governo, tanto em políticas públicas como na dinâmica institucional entre os Três Poderes, isto é, Executivo, Legislativo e Judiciário.
No ano de 2020, com a pandemia da Covid-19, houve o aumento da tensão institucional entre a Presidência da República, apoiada pelo Ministério da Defesa, e o Supremo Tribunal Federal (STF). Com o agravamento dos conflitos, o então presidente e seus apoiadores políticos, incluindo alguns militares, passaram a defender publicamente que as Forças Armadas poderiam exercer um poder moderador.
Tal ideia estapafúrdia, se não fosse, contudo, canalha e conspiratória, tomava como base uma tese levantada pelo jurista Ives Gandra Martins, em que o Artigo 142 da Constituição Federal autorizaria qualquer dos poderes, ao se sentir violado por outro poder, de reivindicar a “garantia da lei e da ordem” pelas Forças Armadas. Segundo Ives Gandra, entretanto, se trataria de uma intervenção pontual, para repor a lei e a ordem, e não para abrir precedente para a ruptura e a ascensão de um poder moderador.
O lado estapafúrdio, para não dizer que faltaria uma comicidade quando se trata de bolsonarismo, é que esta ideia de poder moderador não é nem da ditadura dos anos 1970 e nem do Estado Novo Getulista, é algo que só foi usado no Império, em que este era um poder do monarca que visava harmonizar os outros e garantir a estabilidade do Estado. Portanto, era um quarto poder do Estado, e que durou de 1824 até 1889, sendo exercido pelos imperadores Dom Pedro I e Dom Pedro II.
Por sua vez, a reaparição da tese de Ives Gandra em um momento de crise institucional grave da redemocratização causou uma reação imediata da comunidade jurídica, e começou um trabalho por parte de juristas para a reafirmação da defesa da interpretação correta do Artigo 142 da Constituição Federal.
Foi então realizada a reafirmação de que as Forças Armadas, enquanto instituições de caráter permanente e com função essencial ao Estado Democrático de Direito, devem exercer suas atribuições constitucionais segundo uma conduta de neutralidade política, sob a distinção e separação civil-militar exigida pelo regime democrático. Portanto, não está previsto na Constituição Federal, a autorização de qualquer poder moderador para dirimir conflitos entre os Executivo, Legislativo e Judiciário.
A alusão ao Artigo 142 no título do documento indicava o caráter golpista e de ruptura institucional da conspiração urdida após a derrota eleitoral de Bolsonaro. A Polícia Federal acredita que a elaboração deste documento se deu entre novembro e dezembro de 2022, se utilizando de uma interpretação anômala do Artigo 142, para legitimar o golpe de Estado.
O documento Operação 142 traça um passo a passo da instauração do golpe, sendo os principais: enquadramento jurídico do decreto 142 (Advocacia Geral da União e Ministério da Justiça); convocação do Conselho da República e da Defesa; discurso em cadeia nacional de TV e rádio; preparação da tropa para as ações diretas; anulação de atos arbitrários do STF e das eleições; prorrogação dos mandatos; substituição de todo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE); e preparação de novas eleições. Tais fins se encerram no fatídico documento com resultados estratégicos como: “Estado final desejado político” e, por fim, “Lula não sobe a rampa”.
O plano só não foi efetivado pela falta de adesão dos comandantes do Exército e da Aeronáutica, uma vez que o almirante Almir Garnier, então comandante da Marinha, aderiu à conspiração golpista, colocando as tropas à disposição do então presidente Jair Bolsonaro.
Como dito, o inquérito do golpe foi enviado à PGR. Portanto, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, é quem vai decidir se o ex-presidente e os demais acusados serão denunciados ao STF pelos crimes imputados pela Polícia Federal.
No inquérito, além do atentado do dia 13 de novembro deste ano, do homem em sofrimento psíquico que morreu ao tentar explodir o STF, são registrados os atos de invasão e vandalismo dos Três Poderes de 8 de janeiro de 2023, a tentativa de invasão da sede da PF, em Brasília, no dia 12 de dezembro de 2022, e ainda a tentativa de explosão de um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília no dia 24 de dezembro do mesmo ano.
Por fim, uma das principais conclusões das investigações da Polícia Federal é a de que Jair Bolsonaro atuou de forma direta e efetiva nos atos executórios para a tentativa de golpe de Estado, após a sua derrota nas eleições, no final de 2022. Mas, no momento, judicialmente, o ex-presidente está na condição de indiciado, além de inelegível.
(continua)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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