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O jeito usual

À noite sonho com aqueles longos corredores ladeados por prateleiras repletas das sete mil maravilhas da vida moderna

Não mais que de repente, na minha lista de lugares inesquecíveis entrou o supermercado. Quem diria! Talvez porque não adentro um desses banais estabelecimentos desde março, quando abasteci a despensa pela última vez, imaginando – como todo mundo – que o retiro social duraria um mês… “Até maio,” foi minha previsão otimista ao me despedir dos filhos e netos com lasanha e guaraná. Veio meu aniversário, o Dia das Mães, o aniversário do filho, o abortado casamento da filha da amiga…e virou melancolia nos dois aniversários que temos em junho. Julho também se vai sem aniversários do jeito usual de antes. 

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O jeito usual, aliás, sumiu do mapa. Abastecer a despensa do jeito usual implicaria em uma visita rápida a um dos muitos supermercados que pipocam em cada esquina. Que tal um frango assado? Está saindo da grelha agora…”Pegar uma pizza, ou um macaroni & cheese…Usual seria uma compra semanal, apenas, ao invés de trazer uma ração para três meses, empilhando o estoque de papel higiênico ou papel toalha ou água mineral, ou sabonete, ou álcool gel e água sanitária por todos os cantos.

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À noite sonho com aqueles longos corredores ladeados por prateleiras repletas das sete mil maravilhas da vida moderna. É como caminhar entre as pirâmides do Egito, que tiveram sua finalidade mas hoje repousam no esquecimento e no absurdo. Levo horas comparando e escolhendo as muitas opções para cada artigo…Que alegria descobrir que o pacote A custa mais porém tem maior quantidade que o pacote B; que o produto X tem a mesma qualidade mas custa menos que o produto Y. A satisfação pessoal e intransferível de verificar um a um os prazos de validade e descobrir que o iogurte na fila da frente vai durar menos tempo que o mesmo pacote na fila de trás. Quem haveria de imaginar?

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Enquanto me fecho em reclusão forçada, dois novos supermercados abriram ainda mais próximos do meu address. Já tem cinco… Acho que, no futuro, teremos um a cada lado de nossas casas, ou talvez inventem algum tipo de supermercado caseiro – as mercadorias ficam estocadas em sua despensa e à proporção que você retira um produto, o celular faz plim! E o valor cai na sua conta. Tudo automático, não precisa sair de casa nem jogar mais sacolas plásticas no meio ambiente. Que nem acontece no freezer dos hotéis.

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Fico imaginando esses novos estabelecimentos, próximos mas distantes…como devem ter a fachada, a posição das registradoras – quantas? Que tipo de música enche o ar, pois pelo tipo de música se conhece o tipo de fregueses. O Sedanos, por exemplo, só toca música latina, a todo volume. O setor de frutas e verduras é um jardim verdejante, principalmente aqueles que, a cada meia hora, jogam uma chuvinha delicada sobre as bancas para manter os produtos frescos como na horta. O setor de queijos é outra festa para os olhos e a alma – de onde vêm tantos sabores, tipos e origens?

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Disse De Gaulle: Como alguém pode governar um país que tem 246 variedades de queijos? Falava da França, mas os supermercados não estão muito atrás. Lamento ter perdido as duas inaugurações e as anunciadas promoções imperdíveis. Qual deles vou preferir, quando a vida voltar ao normal? Não gosto de discriminar, seja o que for, e já decidi: Quando o usual ocupar de novo as nossas vidas, irei a todos os supermercados, como numa romaria a todos os templos de devoção: Meca, Aparecida, Vaticano, mosteiro budista, terreiro, Muro das lamentações, pizzarias…

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