A curiosidade matou o gato
Desconfio que meu vizinho é um acumular inveterado. Pode ser que esteja muito ocupado para retirar as caixas com o emblema da Amazon que vão se acumulando diariamente em sua porta, ou apenas seja um sujeito preguiçoso. Pode ser que esteja viajando em gozo de férias, ou talvez seu ofício seja desses que jogam a pessoa na estrada, seja de ônibus ou de trem, em carro próprio ou alheio. De avião ou em algum outro meio de locomoção ainda não disponível aos vizinhos menos afortunados.
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Talvez seja apenas um exibicionista. Como compra muito o frete é gratuito, e assim basta comprar coisas mínimas ou de utilidade diária – pasta de dente ou salmão enlatado, e deixar ao relento, suportando sol e chuva, como uma peça de teatro se desenrolando diante de nossos olhos, para inveja dos demais vizinhos. Não eu, claro. Se fosse invejar alguém seria a freira Inah Canabarro Lucas, a brasileira que agora é a mulher mais velha do mundo – 116 anos, e sempre sorrindo.
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As luzes nas janelas estão acesas, o que pode indicar que tem gente na casa. Ou não. Muitas vezes quem sai deixa a luz acesa e apaga quando volta, porque só vê televisão no escuro ou porque foi se acomodar nos bracos de Morfeu – ou seja, dormiu. No mundo em que vivemos, nada é garantia de nada, a não ser a dupla raio e trovão, que raramente nos enganam: vem chuva grossa por aí. Mesmo assim, o vizinho não corre para recolher as caixas.
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Comprei um par de binóculos para inspecionar as caixas da Amazon adornando a porta do vizinho. Não tão possante que pudesse me mostrar o que tem dentro, claro, mas pela mania que todo ser humano tem de espionar a vida alheia – somos todos voyeurs, mesmo inconscientes. Nada vi de relevante ou suspeito: nome da pessoa e endereço corretos, etiqueta de frete gratuito (Ah!), o peso em pounds. As coisas aqui não funcionam em metros e quilos, muito mais fáceis de manusear. Mas como sempre dizia minha santa avó, a curiosidade matou o gato.
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Um dia tomei coragem e fui ver de perto as pilhas de caixas da Amazon na porta do vizinho. Esperei pelo raro dia em que os estacionamentos em frente das casas ficam vazios, todo mundo no trabalho. Respirei fundo, me enchi de coragem e fui! Bati várias vezes e ninguém atendeu, mas isso nada indica. Quando batem na minha pobre porta olho pelo olho mágico e se não reconheço a figura do outro lado, não abro. Faz sentido, né?
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Também não abro para figuras que reconheço, como meu sobrinho Ravildo e minha prima Potenes, que só aparecem para pedir alguma coisa – seja uns ovos para a omelete ou uma passagem de avião para o fim do mundo. Também não abro para cobradores, em geral pessoas desagradáveis e insistentes. Juro que só queria olhar de perto aquelas misteriosas caixas, mas quem resiste? Pois vendo, nada via… Então peguei uma caixa, apenas. Adivinha no que deu?
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Não sei explicar porque havia um canivete no meu bolso… não me lembro de ter pego no fundo da bolsa de coisas inúteis que escondo no fundo do armário dos fundos. Abrir caixas alheias é considerado crime passível de prisão perpétua? Uma, apenas? A porta se abre de repente o vizinho… Já se passaram três meses, e a polícia ainda não descobriu meu corpo empalhado em uma das muitas caixas da Amazon empilhadas na porta do vizinho.