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O serviço sujo

A justiça estará sempre ligada à harmonia entre as partes

Existem duas práticas impregnadas no “ethos” dos brasileiros que, embora tenham aparência positiva, concretamente são depreciativas à nossa imagem e vida.

Considerando que a realidade aparente está sempre ocultando a concreta, e que a população em geral não ultrapassa a aparência nos objetivos de análise, vamos, em breve reflexão, especular essas práticas e suas consequências.

Trataremos inicialmente do “jeitinho brasileiro”, propalado como uma qualidade específica, atribuída ao nosso povo, de optar por alternativas simplificadoras, sem o rigor dos regulamentos e com a utilização da “compreensão”, “facilitação”, “improvisação”, “adaptação” dentre tantas outras necessárias aspas, que em si mesmas, expressam a negatividade aos conceitos. Mas, esclareço que a reflexão estará voltada à utilização deles à ética social e não às técnicas do fazer.

Primeiramente é preciso entender que os regulamentos são produzidos para nossa vivência coletiva, no sentido de universalizar as possibilidades e evitar as pessoalidades e os vícios, impregnados na ação, principalmente na ação do agente público.

Platão, o pai de nossa cultura, traz em sua obra As Leis uma clara e objetiva preocupação que deve ter o legislador na construção dos regulamentos, para que o cidadão a que eles sejam destinados compreenda, efetivamente, a utilidade deles para o estabelecimento da justiça nas relações, tanto dos indivíduos entre si, quanto desses com a cidade.

Em nossa democracia, o legislador é um coletivo chamado parlamento, onde toda a sociedade deve estar representada e ter dinamismo para criar as leis e também modificá-las sempre que necessário. Assim, ajustar a prática a esses conceitos – compreensão, facilitação, improvisação, adaptação – acaba por prestar um grande desserviço à vida coletiva, além de abrir espaço para a corrupção e o favorecimento, numa sociedade que deveria ser de iguais, pelo menos frente aos regulamentos.

A outra prática, também muito associada a esta primeira, é a apelidada lei de Gérson, o “levar vantagem”. Estabelecida como “atitude do esperto”, traz na máscara da aparência uma qualidade, contudo, no concreto é um vício, uma vez que a vantagem é obtida em função da desvantagem de outrem, chegando ao cúmulo de justificar inclusive, desonestidades e falhas de caráter, mas ainda pior, colocando o “esperto” como um sujeito perspicaz.

Para que estejamos vivendo uma curva ético-moral coletiva ascendente, é fundamental que os regulamentos estejam constantemente em avaliação e ajustamento, buscando aproximarem-se da verdade da vida. É preciso ter clareza de que todas as vezes que nos utilizamos dessas práticas, o jeitinho e a vantagem, prestamos o “serviço sujo” de manter o regulamento impróprio e sobrepor ao entendimento do legislador o nosso, mascarando e corrompendo a democracia.

Não podemos esquecer que, entre o legislador e a sua intenção, embutida na lei, está o executor, que sempre pode preferir a autonomia que a submissão a ela.

É preciso que se cumpra o regulamento, até para que seus vícios transpareçam e exijam a correção e adaptação à realidade no ambiente devido, evitando a corrupção ou deturpação de suas finalidades nos casuísmos oportunos.

A vida em sociedade é uma construção coletiva e precisamos estar atentos para fortalecer o comum dentro das especificidades individuais e dos grupos.

Everaldo Barreto é professor de Filosofia

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