O trem parava na estação, renovava os passageiros, partia. Nenhum avião pairando no ar, ônibus um dia ou outro, só para o interior
O trem parava na estação, renovava os passageiros, partia. Nenhum avião pairando no ar, ônibus um dia ou outro, só para o interior. E o trem derrubando árvores e queimando lenha: café-com-pão, manteiga-não. Na sombra das castanheiras em volta da estação barraquinhas de frutas e guloseimas tentavam os que chegavam ou partiam. Nada Made in China, o que estivesse à venda vinha da horta ou da cozinha dos barraqueiros e barraqueiras, transmutados pela necessidade em comerciantes: broa de milho, pastel de palmito, papa de milho verde, canjicão, milho cozido.
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O queijo não era comprado já fatiado e embalado na padaria, que aliás só vendia pão. Pois o nome não é padaria? Queijo e requeijão vinham da roça, como o leite entregue nas portas ao amanhecer, inspirando alegre marchinha carnavalesca – O leiteiro coitado, não conhece feriado. Quem ia ficar sem o leite das crianças nos domingos e dias santos? O leite tinha a peculiaridade de precisar ser fervido assim que chegava, geralmente entornando a metade e fazendo bela sujeira no fogão. Mesmo fervido, azedava ou coalhava com facilidade. Pensa que era jogado fora? Virava doce de leite.
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Era um tempo em que, fora os falsos amores e as rixas de vizinhos, não se jogava nada fora. Além do leite impróprio para o uso, as rixas de vizinhos acabavam logo, e poucas viravam feudos se esticando para as próximas gerações e engordando a literatura. Como no caso dos Nelsons e Mendonatos, fazendeiros com casas vizinhas na cidade para que os filhos frequentassem a escola. Uma brincadeira boba num baile de carnaval, Raul Nelson tirou a bela esposa do amigo Pedro Mendonato para dançar. Estavam todos pra lá de Marrakesh com o excesso de lança-perfume, mas Pedro se ofendeu com a ousadia e a festa acabou em pancadaria. Isso no sábado de carnaval e nas três noites seguintes o clube não abriu. A cidade nunca os perdoou.
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O tempo passou, os filhos cresceram e foram estudar no Rio de Janeiro, como era moda então – Pedro Júnior e Mariana Nelson. Por lá eles se encontraram, se apaixonaram e se casaram. Quando o filho nasceu, Pedro Junior quis batizar o pimpolho de Pedro Neto, e Mariana achou que era demais – casar tudo bem, mas pôr o nome do inimigo do pai no filho seria ofensa grave. Quando os pais descobriram a trama eles já estavam desquitados, e a briga pela guarda do filho durou até o menino completar 21 anos. Continuam inimigos.
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As rixas de cidade pequena complicavam a vida nas festas de aniversários e casamentos – qual deles convidar? Se convidasse as duas famílias, nenhum deles comparecia, não convidar ficava chato. Hoje o leite vem em caixinhas e ninguém faz doce se estragar. Mesmo porque não estraga, tem preservativos demais. O queijo fatiado perdeu o sabor, os casamentos têm prazo de validade. O barraqueiro virou camelô e só vende produto importado da China. O trem descarrilou.