Os beats eram o produto de uma vivência conjunta e não de um programa de arte
A contracultura vem a partir de uma subcultura, mas ultrapassa esta classificação, pois avança para um território de ruptura, de se tornar inconciliável com a cultura dominante. A ideia e a prática de uma contracultura estão baseadas num modelo alternativo de vivências que os modelos da tradição não são capazes de produzir e realizar.
A contracultura se molda fora do espaço institucional, por esta sua característica de oferecer algo novo, um experimento de vida e de comunidade, uma dissonância que podemos exemplificar, modernamente, na experiência norte-americana, com o surgimento da geração beat, movimento que se firmou nos anos 1960.
A poesia beat se articulava diretamente com a vida, com jovens norte-americanos, a maioria concentrada em São Francisco, na Califórnia, Estados Unidos, e que criam um modelo de arte que rompe tanto com o intelectualismo como com a tecnocracia.
E na experiência de aura, no ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire, de Walter Benjamin, temos uma memória involuntária, relacionada à duração de Bergson e bem exemplificada em Proust, e a aura seria quando este tipo de memória era aflorada, uma capacidade de olhar dotada a uma coisa, quando se percebe a aura. Esta experiência rica da arte com a aura se reflete também na experiência beat com a arte.
A experiência beat não se formou como vanguarda ou exatamente um movimento, pois os beats rejeitavam a ideia comum das vanguardas como movimento de arte para o progresso, uma vez que os beats refutavam este ímpeto comum das vanguardas de querer renovar o mundo inteiro.
As vanguardas foram um tipo de delírio que dominou as fantasias futuristas, surrealistas e dadaístas de programas de arte ambiciosos, e que caracterizaram a ideia mais cristalizada que temos de vanguarda, historicamente falando, estas rupturas formais que ocorreram no início do século XX, movimentos programáticos que, invariavelmente, eram insuflados por ambições mirabolantes.
Os beats, contudo, caminhavam num lugar paralelo das grandes ambições programáticas de efeito histórico transformador das vanguardas, num distanciamento em que não existia um programa pronto de arte, mas um conjunto de pessoas que viviam juntas em liberdade e que tinham gostos comuns.
Eram o produto de uma vivência conjunta, e não de um programa de arte de vanguarda, daqueles tiques ingênuos que víamos nas correntes da primeira metade do século XX, o que pode ser bem exemplificado na experiência extrema do dadaísmo.
A transcendência artística é um dos objetivos dos beats, rompendo com o discurso da tradição, recusando a norma da cultura dominante, começando como uma negativa, o que vai caracterizar o que se chama de contracultura, algo bem diferente do que falamos sobre vanguardas. Contracultura que se liga à vida e a uma vivência diferente da tradicional, rompendo o paradigma da vida comum e tradicional.
A contracultura não é um programa de arte, mas um conjunto de vivências que tendem a uma ideia de comunhão comunitária, de amizades comuns, de uma rede de pessoas interligadas, e a geração beat foi exatamente isso.
A contracultura rompe com todo o aparato técnico e de especialização da tecnocracia, num movimento de criação de mundos, se opondo à ordem constituída, e de todo o progresso que se baseia neste tecnicismo.
Na tecnocracia o mundo ganha subdivisões e escaninhos cada vez mais atomizados e automatizados, num movimento de repetição que é desmontado por uma criação alternativa que a contracultura oferece, e com algo além, um modelo que vai além da arte, e se liga a um novo modelo de vivência.
A contracultura também não se filia ao marxismo, tem um paradigma descentrado, desordenado, tudo é pensado por meio da ideia de comunidade, num agrupamento de afetos, fora da norma tradicional.
A contracultura vai além da luta de classes marxista, sua ruptura fundamental é com a tecnocracia, esta que é o auge e a cristalização do modelo de sociedade e de produção originado na Revolução Industrial, sendo a tecnocracia a sua forma consolidada de organização, governada por uma ideia de eficácia obsessiva que opera como um verdadeiro imperativo.
Esta ideia de comunidade dos beats, por fim, chega ao ponto da implosão e de seu fim quando, por conseguinte, no fim dos anos 1950, este movimento é subsumido pela cultura de massa, deixando para trás seu aspecto original de comunidade, para se tornar uma sociedade.
E temos, contudo, o que é o caráter beat, em que o grito beat é metaforizado pelo Uivo de Ginsberg, que é o gesto, o toque, o corpo, a vida, um modelo de comportamento que é a vida beatnik, em que a geração beat ganha a sua verdadeira expressão lírica.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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