Sem implicações de responsabilidades, fundamentação demonstra ser problemática
Esta proteção dada pela Primeira Emenda, nos Estados Unidos, coloca a liberdade de expressão numa dimensão de igualdade intrínseca. As consequências dos discursos de ódio, no plano ideológico (e não das práticas violentas e físicas que deles possam advir), não são levadas em conta.
O princípio de igualdade política se dogmatiza, colocando a liberdade de expressão numa perspectiva absoluta, sem considerações de mérito ou de conteúdo sobre o debate, o que poderia servir para eventuais supressões de manifestações, o que não ocorre no debate político norte-americano e na concepção de liberdade de expressão subjacente a este.
Contudo, a crítica feita a esta concepção de debate político é a de que esta ideia de igualdade sofreria uma corrosão por estes discursos de ódio, com consequências reais às minorias agredidas. A corrosão da liberdade seria a consequência do livre trânsito de ideologias de exclusão.
Em A Justiça como Equidade, John Rawls é questionado sobre se sua concepção de liberalismo político seria suficientemente neutra, pois não daria vazão para todos os modos de vida possíveis. Contudo, Rawls responde que existem doutrinas que entram em conflito direto com os princípios de justiça, portanto, não tendo as condições para sustentar um regime constitucional justo. Uma ideia de bem que pregue a repressão de minorias, por exemplo, não seria capaz de criar um ambiente de justiça e de práticas justas.
Por conseguinte, a neutralidade não é o pano de fundo em que se delimita a concepção de justiça em Rawls. Existe um espaço social limitado, portanto, a justiça não pode ser neutra, pois existe um conflito entre o que favorece uma sociedade justa (e não neutra) e doutrinas que ameaçam corroer este estado de coisas, produzindo ataques e agressões a minorias. Na sociedade justa, para Rawls, estas doutrinas excludentes podem perdurar em pequenos grupos, desde que estas convicções não sejam colocadas em prática, privando os seus alvos de direitos constitucionais.
Existe um certo minimalismo perverso em colocar numa perspectiva igualitária no debate público concepções baseadas na justiça e na liberdade civil, de um lado, e doutrinas que pregam o ódio e a segregação, de outro lado. O poder de reação institucional eficiente servirá, neste caso, para preservar princípios civilizatórios inegociáveis, e que não podem ser subsumidos numa pretensa igualdade política que vá de encontro à própria natureza do exercício de liberdade, pois estas ideologias de exclusão pretendem suprimi-la, e impor uma ordem política autoritária ou segregacionista.
O princípio da dignidade humana, por exemplo, não se limitaria a uma aura kantiana, mas na interação de minorias em pé de igualdade no plano civil, no mundo real, com meios de proteção social que produzam este efeito nas relações sociais e de trabalho, colocando a ideia de justiça para além do plano discursivo, de uso da palavra, conseguindo alcançar o terreno da vida prática.
Ronald Dworkin, por sua vez, ignora as consequências reais de doutrinas excludentes. Ele é um opositor do controle sobre os discursos de ódio, pois defende a autonomia individual, dizendo que este controle seria paternalista. A liberdade de expressão possuiria um valor intrínseco, acima de seu valor instrumental, numa ideia de preservar cada indivíduo como sujeito moral pleno, que não pode ser cerceado em sua livre expressão de ideias.
O sujeito moral de enunciação, que deve ter autonomia plena, um direito de expressão livre de amarras, não torna ainda a liberdade de expressão absoluta, mas é uma inflexão de liberdade que vai além de uma motivação ou validação apenas instrumental. Contudo, concepções abrangentes da liberdade de expressão, como a de Dworkin, apresentam sempre o mesmo problema, que é quando o discurso de ódio se concretiza, causando danos às suas vítimas.
Ao colocar este sujeito moral como responsável pelos próprios atos, estaríamos interditando a possibilidade reversa de exclusão de minorias mediante violência, que é o problema no qual a concepção abrangente de liberdade de expressão se encapsula e vira uma espécie de minimalismo perverso que usa uma justificativa que não se fundamenta plenamente, devido a implicações no mundo real, no mundo da vida.
Ou seja, a fundamentação de uma liberdade de expressão, sem implicações de responsabilidades civis e penais, demonstra ser bastante problemática e aporética. Na esfera deliberativa, o interdito, uma vez estabelecido, impede o dano a possíveis grupos discriminados.
Esta desigualdade política, que impede o discurso de ódio de se expandir, que é o argumento que defende uma igualdade ilimitada, é fictícia, uma vez que o discurso de ódio se apoia numa igualdade política postiça, contraditória. O discurso de ódio pretende destruir através de um princípio que este discurso nunca afirma, pelo contrário, nega, renega e exclui, que é a igualdade também para as minorias, dizendo-se detentor de um direito universal que se fundamenta nesta pretensa igualdade política.
Colocar o sujeito moral na esfera de suas responsabilidades, isto é, como autor das consequências de seus atos e de suas assunções civis e penais, o situa, necessariamente, como objeto de punição por danos que cause. Esta possibilidade interdita a desigualdade de fato e de direito, refutando a ficção de igualdade na qual o segregacionismo e o discurso de ódio tentam se apoiar, numa contradição de sinais trocados.
No debate norte-americano, contudo, tal interdição dentro da liberdade de expressão seria uma mutilação deste debate público. Afirma-se que o debate público se tornaria mais áspero para os grupos vulneráveis, caso tivéssemos esta limitação para os discursos de ódio na realidade norte-americana.
A objeção a isto é a de que, por outro lado, o precedente para a violência física, no caso de uma liberdade de expressão ilimitada, estaria aberto e virtualmente iminente, pois mesmo com amarras legais a esta agressão, o campo aberto do debate que prega a violência, por seu turno, não deixaria de autorizá-la nas vias de fato.
A centralidade do discurso político, na realidade dos Estados Unidos, cria um sistema de proteção da liberdade de expressão que, em consequência, autoriza os discursos de ódio em sua plenitude. A justificativa para garantir direitos plenos a qualquer tipo de discurso político, nos Estados Unidos, se dá pela necessidade, segundo a interpretação constitucional e civil, de manter a esfera pública norte-americana aberta. Contudo, a contradição está em que o discurso de ódio pode bloquear o acesso de suas vítimas à esfera pública.
No Brasil, por sua vez, um exemplo mais claro de interdição de discurso de ódio é o racismo, que a Constituição Federal de 1988 criminaliza, enquadrando, no artigo 5°, XLII, como crime inafiançável e imprescritível, seguida da Lei n. 7.716/89 (a Lei Afonso Arinos, de 1951, que colocava o racismo na categoria de contravenção penal.
Contudo, temos uma versão nebulosa e permissiva nos casos elencados como injúria racial. Uma filigrana da legislação brasileira, que tenta diferenciar o ataque individual ofensivo, dos ataques racistas que agridem a coletividade afrodescendente.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com