Negligência do Estado nas periferias x delinquência juvenil
A não-presença do Estado na assistência, infraestrutura e oferta de serviços é tão grande, que o faz passar despercebido, não sendo incomum regulamentos específicos como: “acenda a luz interna”, “apague os faróis” e “tire o capacete” estampados nos muros.
A diferença de tratamento às pessoas, em relação aos territórios que elas ocupam, constrói faces tão distintas que propicia uma legitimação da diferença, como dizia o Biquini Cavadão: “aqui embaixo as leis são diferentes”. E são mesmo!
A construção civil é completamente livre e nem sempre responsável, uma vez que assistimos desmoronamentos de edificações feitas sem projeto, que não foram acompanhadas pelo poder público, até com vítimas fatais. As calçadas são irregulares, atendendo às necessidades do morador e não do público. Não é incomum vermos um andar superior com uma varanda avançando o alinhamento até a extremidade da calçada.
Quanto aos regulamentos de trânsito, a situação ainda é muito pior, além dos carros sem manutenção segura, condutores menores de idade e não habilitados, tem ainda os meninos, que a partir dos 13 ou 14 anos, já são explorados nas distribuidoras de bebida, água e gás, pilotando motos de entrega, vendendo bebidas, etc. Esses meninos chegam a valorizar mais aquela ocupação que lhe rende dinheiro que a escola, que poderá ajudar na construção de um seu futuro melhor, daí para a delinquência é um passo quase imperceptível.
Enquanto professor de Filosofia da educação básica, atuando nas periferias, me incomodo muito quando preciso ensinar moral e ética para meus alunos e me utilizo desse nosso Estado, kantiano, para esclarecer a formação da moral.
Partindo do imperativo categórico “Deves porque deves”, ou seja, se está na lei, ao cidadão “seu autor”, cabe cumpri-la, tenho a impressão de estar falando de um outro país, ou mesmo de um outro mundo. Um lugar que meus alunos efetivamente desconhecem.
Com a experiência que adquiri educando no presídio, percebo que toda esta adaptação da moral foi causa fundante da estada de muitos jovens no cárcere. A ética do seu território sempre foi adaptar a moral para lhe garantir uma vida melhor.
A sociedade como um todo parece sofrer de uma miopia. Não consegue enxergar o desastre que é a permissividade que o exemplo do Estado discricionário ensina às populações desses territórios por ele abandonadas. Esse “ajuste” na moral, aquela expressa nas leis e regulamentos, por meio do chamado jeitinho, constrói nas populações desses territórios, em especial nos adolescentes e jovens, exatamente os meus alunos, uma visão de que a moral pode ser adaptada para lhe atender. Isto posto, para definir onde e quando ela pode ser adaptada, tem espaço para muitos desvios que poderão custar à própria sociedade suas consequências e correção.
Enfim, o Estado desobedece suas próprias leis, o cidadão, espelhado nele, a adapta, e o Estado vem puni-lo. Tem alguma coisa muito errada nesta equação!
Everaldo Barreto é professor de Filosofia