O racismo estrutural, tese de Silvio Almeida, tem mais uma prova material com o caso de Beto
O caso João Alberto Silveira Freitas envolve uma coincidência trágica, pois foi o assassinato de um homem negro por dois seguranças brancos na noite anterior à comemoração do dia da Consciência Negra. João Alberto, o Beto, foi espancado até a morte por um policial militar e por um segurança em uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, na noite do último dia 19.
As agressões começaram após uma suposta discussão entre Beto e uma funcionária do Carrefour, e os seguranças o seguiram e o escoltaram para fora da loja, quando Beto teria desferido um soco em um dos seguranças, ocasionando a reação desproporcional que culminou em seu assassinato por asfixia.
Os dois agressores, Magno Borges Braz e Giovane Gaspar da Silva, foram presos em flagrante e são investigados por homicídio qualificado. Segundo a polícia, os seguranças ficaram sobre Beto por cerca de cinco minutos. Agora, corre uma gravação obtida pelo site GauchaZH, que mostra um terceiro homem que diz “Sem cena, tá? A gente te avisou da outra vez”, enquanto João é imobilizado. A funcionária que tenta impedir a gravação do flagrante se chama Adriana Alves Dutra.
O Grupo Vector, ao qual pertenciam os seguranças, teve seu contrato rompido pelo Carrefour. A empresa francesa disse que está à disposição das autoridades para colaborar com as investigações, e a delegada responsável pelo caso, Roberta Bertoldo, disse que a reação dos seguranças foi desproporcional. Os investigadores seguem ouvindo várias testemunhas e analisando imagens de câmeras de segurança.
O Carrefour, embora agora se manifeste dizendo que fará rigorosa apuração interna do caso e que “nenhum tipo de violência e intolerância é admissível”, possui um histórico terrível de diversas formas de violência, sendo o mais recente em agosto deste ano, que foi o caso de um promotor de vendas do Carrefour que morreu durante o trabalho em uma unidade de Recife, Pernambuco.
Moisés Santos, de 53 anos, foi coberto com guarda-sóis e cercado por caixas, enquanto a loja seguiu funcionando como se nada tivesse acontecido. Seu corpo permaneceu no local entre 8h e 12h, até ser retirado pelo Instituto Médico Legal (IML). Outros casos de racismo, violações trabalhistas e agressões contra animais também são episódios ligados ao supermercado.
Vários protestos foram registrados em todo o país, sobretudo do movimento negro, no influxo do dia da Consciência Negra, e vão continuar. Foram registradas manifestações na avenida Paulista, no Rio de Janeiro, em Goiânia, e a mobilização se estende pelas capitais do país.
O caso e as manifestações levantam debates e ações antirracistas, trazendo à baila o racismo estrutural tematizado academicamente por Silvio Almeida, e com o governo federal tendo uma postura negacionista. Tanto o presidente da República, Jair Bolsonaro, como o vice, Hamilton Mourão, tiveram posturas negacionistas, e o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, disse que os casos de racismo no país são circunstanciais e não estruturais, tomando o efeito pela causa.
Num país de abolição tardia, feita sem respaldo social aos novos libertos, com casos de injúria racial recorrentes e diferenças enormes de oportunidades, com sistemas de cotas muito bem-vindas, mas que nem todos os negros e negras do Brasil têm condições de aproveitar, dependendo de suas condições de partida e mobilidade social, o racismo estrutural é uma realidade incontestável.
As políticas públicas, produtos de uma má vontade institucional, não avançam no combate a estas desigualdades. As poucas formas de promover a mobilidade social da população negra, a concentração populacional negra nos grandes bolsões de pobreza de comunidades (favelas) dominadas por uma vida áspera de subjugação pela violência armada, seja de facções criminosas ou milícias armadas, escancara na nossa cara branca um problema secular, histórico, uma ferida aberta herdada de um país que um dia escravizou os antepassados desta população que hoje protesta nas ruas.
O Dia da Consciência Negra no Brasil não é o produto gratuito de uma circunstância, mas de um problema estrutural. A luta antirracista é uma consequência direta desta realidade persistente e acintosa de humilhação de homens negros e mulheres negras diante da falta de oportunidades, da realidade de injúrias raciais, de suspeitas açodadas de forças de segurança e quejandos, etc.
O racismo estrutural, tese de Silvio Almeida, tem mais uma prova material com o caso de Beto. O racismo no Brasil não é uma grande coleção de circunstâncias, mas um problema de fundo que deve e pode ser resolvido.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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