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Rastros digitais: a nova vigilância

Como o passado online de políticos e cidadãos tem sido desenterrado pela IA

O universo digital, que outrora era visto como uma plataforma de liberdade e anonimato, se tornou um campo minado para aqueles que ocupam posições de destaque – especialmente no cenário político. Hoje, a linha entre o privado e o público está cada vez mais tênue, e a inteligência artificial (IA) vem desempenhando um papel decisivo nessa transformação. A facilidade com que conteúdos antigos podem ser resgatados tem revelado muito mais do que seus criadores gostariam.

O caso de JD Vance, candidato a vice-presidente nos Estados Unidos, traz à tona uma questão que muitos políticos e cidadãos evitam enfrentar: a internet nunca esquece. Comentários misóginos, xenófobos e ligações suspeitas, que talvez parecessem inofensivos ou até irrelevantes no momento em que foram feitos, agora voltam como fantasmas para assombrar sua candidatura. Isso nos leva a uma reflexão: o que realmente define o caráter de uma pessoa no século XXI?

As ferramentas de IA, como a plataforma desenvolvida pela Ferretly, vieram para radicalizar esse processo. Não se trata apenas de expor figuras públicas. Ao vasculhar redes sociais e transcrições de podcasts, a IA é capaz de desenterrar posts e discursos que, até então, pareciam enterrados no esquecimento digital. Isso revela uma nova era de responsabilidade e levanta preocupações sobre vigilância, privacidade e o controle dessas tecnologias.

A obsessão por desenterrar esqueletos digitais de candidatos, entretanto, traz consigo um dilema moral. Até que ponto devemos permitir que o passado online de uma pessoa defina seu presente? É evidente que atitudes discriminatórias ou criminosas não podem ser ignoradas, mas onde traçamos a linha entre o que é socialmente aceitável e o que se trata de um erro juvenil? As consequências para figuras políticas são claras, mas a verdadeira questão é como isso afetará o cidadão comum.

A verdade é que essa superexposição não está restrita apenas à política. Ferramentas de análise de IA estão sendo usadas por empresas em processos seletivos, revelando históricos digitais de candidatos a empregos. Esse novo “padrão moral” pode custar muito caro, tanto para os que tentam seguir carreiras públicas quanto para os que buscam simples oportunidades profissionais. As barreiras entre vida pessoal e vida profissional, antes claras, foram desfeitas.

Ainda que a análise automatizada de perfis tenha suas vantagens – prevenindo contratações problemáticas e revelando comportamentos nocivos –, ela também levanta questões sobre censura e controle. A ideia de que um algoritmo pode julgar o caráter de uma pessoa baseado em postagens feitas há mais de uma década parece inquietante. Qual será o impacto disso nas futuras gerações? Jovens de hoje podem ser penalizados por comentários feitos no calor do momento, sem a mínima noção do peso que aquelas palavras poderiam ter no futuro.

A tecnologia está mudando a dinâmica da exposição pública e política, mas isso não significa que estamos prontos para lidar com todas as implicações éticas. Em um mundo onde cada movimento digital é registrado e pode ser desenterrado a qualquer momento, a privacidade se torna um conceito obsoleto. A questão não é mais se seremos vigiados, mas como lidaremos com as consequências dessa vigilância.

No fim, a verdadeira revolução não está na capacidade da IA de desenterrar esqueletos no armário. Está na forma como nós, enquanto sociedade, decidimos usar essas descobertas para definir o que é aceitável e perdoável em uma era onde o passado nunca é realmente deixado para trás.

Flávia Fernandes é jornalista, professora e pós-graduanda em Inteligência Artificial e Tecnologias Educacionais pela PUC-MG.

Instagram: @flaviaconteudo

Emal: [email protected]

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