A impulsividade das paixões, sem o tempero da razão, vai sempre ferir a vida em sociedade
Friedrich Nietzsche esbarrou a sociedade de seu tempo, e podemos dizer que continua esbarrando essa nossa, ao romper com os modelos comportamentais, advindos da antiguidade, que definiam o ser humano como um ser voltado para o desenvolvimento de virtudes em direção a um “bem”.
A construção histórica dessa imagem socrática de ser humano, muito mais social que humana, nos deixou um legado de hipocrisia, que foi acomodado no senso comum e assimilado pelas religiões, de forma que qualquer dúvida e/ou contestação desse modelo sofre a intolerância daqueles que se prendem a conceitos dogmáticos, “convenientes e agradáveis”, e evitam qualquer reflexão que possa ameaçá-los.
Partindo dessa concepção, a sociedade elaborou seus códigos morais, exigindo do ser a sociabilidade conveniente ao modelo de sociedade que lhe abriga.
O agora chamado cidadão, ser da cidade, aristotelicamente político, moldado nesse ser idealizado, passa a gerar a condenação das atitudes que lhe ferem a concepção construída, muitas vezes, deixando de lado a coerência e a visão de ser humano, como um ser de possibilidades e livre.
O que estamos vivendo, no movimentar da política brasileira, expõe a utilização mais hipócrita e conveniente dos modelos tradicionais, ao mesmo tempo em que, os rompimentos com esses mesmos modelos são descaradamente justificáveis, diante de uma visão míope de adequação/conformação do ser a eles (os conceitos).
Exemplos desta atitude vêm desde a campanha eleitoral, que teve como lema: “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Esse forte apelo, nacionalista, religioso/cristão, rompe com toda a construção dialética que vinha constituindo o Brasil, mesmo que a passos lentos, como um Estado laico, solidário, composto de um povo amistoso e hospitaleiro, possível de abrigar a todos os cidadãos, em suas liberdades de crença e de construção própria e de mundo, para além, inclusive, de fronteiras geopolíticas.
A eleição de 2018 nos trouxe então, um representante maior, que imbuído do propósito de campanha, contradiz esses mesmos princípios, discriminando os diferentes e tentando construir uma visão hegemônica de exclusividade moral e religiosa, de posicionamento superior (Brasil acima de todos). Contudo, o exemplo da falência desse discurso aparece de acordo com a conveniência do momento e os interesses desse “Messias”, que passam a ser superiores, inclusive aos próprios compromissos, explicitados em campanha como o “combate à corrupção”, que tinha, no oportunismo do ex-juiz Sergio Moro seu estandarte, ou da visão cristã, de empatia, amor e perdão, apropriada e moldada à sua conveniência para condenar e excluir.
A estratégia de imposição do senso comum passa, como um rolo compressor, destruindo toda e qualquer construção racional ou dialética do nosso modo de viver, até mesmo os princípios fundamentais da democracia, muitas vezes travestidos como “vontade da maioria”, (aliado à construção de uma maioria hipotética), em detrimento ao “direito de minoria”.
Entretanto, se esse mote de campanha, que ganhou eleição, é cada vez mais fortalecido, seus apoiadores usam e abusam da superficialidade do senso comum, para agirem de forma equivocada e mesmo contraditória.
Um exemplo atual e próximo está no que assistimos como “defesa incondicional da vida”, feita por Sara Winter, no caso do aborto autorizado pela Justiça, na criança de 10 anos, estuprada pelo tio. Ao mesmo tempo em que ela defende, incondicionalmente a vida, contra o aborto, defende também o armamento da população…
Bem, que me perdoem todos os ícones do socratismo, do cristianismo e até do pseudo-humanismo, sempre em moda, mas só mesmo a ousadia do existencialismo, aqui refletida em Nietzsche, desnudando um ser humano em construção (a existência precede à essência), e exaltando a vontade de potência (a vida querendo mais força e poder) e o niilismo (como falta de base sólida para as crenças) para clarear uma visão mais realista e próxima de nossa construção, sem se deixar encantar pela hipocrisia da bondade, como atributo superior do ser humano.
Everaldo Barreto é professor de Filosofia