Aceitar é parte do pacto que temos com a vida
A velha casa há anos lacrada no número 49 da Rua dos Cravos, onde nunca um cravo floresceu e os sons de um cravo jamais foram ouvidos, de repente é invadida por um exército de pedreiros, bombeiros, eletricistas e pintores, numa reforma apressada e mal elaborada. A pacata ruazinha se assanha com a novidade. Quem? Quando? As perguntas correm de porta em porta, que as casas todas se abrem para a rua, não há necessidade de esticar o ouvido nas janelas gradeadas
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Quem comprou, quem vai morar, que novidades trará? A criançada bicicletando pelas calçadas ou jogando pelada no asfalto torce para que os novos donos tragam crianças com bicicletas e videogames. Os adultos levam um café requentado para os operários, tentando arrancar alguma informação sobre os futuros moradores. Em vão. As obras se aceleram – caminhões despejando cimento e tijolos na calçada; poeira de paredes demolidas; o cheiro acre de tinta fresca.
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Um dia, finalmente, pedreiros e bombeiros e eletricistas vão embora. A caçamba de entulhos leva os últimos vestígios do passado. A mudança chega na madrugada de um frio e chuvoso mês de junho – os vizinhos demoraram a perceber que o número 49 já abrigava uma moradora solitária, porque som algum se fazia atrás das janelas cerradas, ninguém entrava ou saía. Aos poucos, porém, os sinais foram se impondo – luzes vazando pelas frestas das persianas, o tilintar do telefone, o entregador da mercearia…
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Jane, a vizinha mais próxima, ousou bater e dar as boas-vindas. Foi atendida na porta, com educação mas sem convite para entrar. Mesmo sendo uma das moradoras mais antigas, Jane não a reconheceu. Mas reconheceu os sintomas – uma echarpe na cabeça, a face pálida, a dor aparente no olhar. “Moro aqui do lado, se precisar de alguma coisa…”
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Grudadas umas nas outras, as casas da Rua dos Cravos parecem se proteger mutuamente do desgaste do tempo e da vida. Construídas na década de 30 para acomodar os militares do quartel na rua de trás, foi chamada Villa Militar. O quartel foi desativado e o nome mudou, para Cravos, ninguém sabe o motivo. Como uma criança brincando com blocos de armar, o tempo brincou também com as casas enfileiradas na rua estreita, mudando formas e cores – adicionar uma varanda, subir um pavimento, sacrificar um cômodo para abrir uma garagem, dividir para caber mais um filho ou neta.
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Aí aconteceu o milagre econômico. Os jovens da rua pegaram seus diplomas universitários e partiram para os endereços nobres na orla dos muitos mares que circundam a ilha. As casas da Rua dos Cravos viraram oficinas mecânicas, barzinhos mal frequentados, salões de cabeleireiras, mercearias. Mas milagres duram pouco. A sucessão de planos econômicos e crises financeiras dilapidou os salários e nivelou por baixo as classes sociais. Como aves de arribação, os filhos voltaram, e a Rua dos Cravos outra vez se anima com a algazarra de crianças brincando no asfalto, interrompendo o trânsito.
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Superados os efeitos da quimioterapia e os dias frios do inverno, a nova moradora vem sentar-se à porta, um lenço na cabeça, um livro nas mãos – aos poucos reaprendendo as artes da boa vizinhança – Zelda leva um café acabado de passar, Carlos deixa um livro. Ana oferece o bolo de aipim… quem resiste? Foi Da. Laura, a moradora mais antiga, que lembrou – “É a Agnes, gente, antiga moradora da casa!” Agnes tinha dois filhos e quando o marido faleceu foi morar perto deles. Laura pergunta pelos filhos e Agnes enxuga uma lágrima no rosto triste, “Partiram e não me deixaram netos…” Aceitar é parte do pacto que temos com a vida.
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Outro inverno veio encobrir o sol da manhã e outra vez Agnes se esconde atrás das cortinas. A rua demorou a perceber que o número 49 estava outra vez vazio. A casa foi vendida e enquanto pedreiros e encanadores se ocupam das reformas, a rua se agita com a novidade – Quem? Quando? Ninguém chorou por Agnes, e a vida continuou se preparando para o dia seguinte.