Tem algo no Brasil criado por um nobre que ainda funcione?
No bar de uma das esquinas da cidade de Vitoria, no Espírito Santo, uma velha senhora ficava sentada na porta anotando os palpites do jogo do bicho: “Vai dar macaco!”. O comprovante da transação era um pedacinho de papel sem timbre e sem nome, rabiscado à mão e às pressas. Dando sorte, o esperançoso voltava ao bar da esquina, mostrava o papelzinho e levava a bolada – fosse qual fosse o valor, sem exigirem comprovante de residência e carteira de identidade.
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José da Silva joga toda semana: nem ganha no palpite nem perde as esperanças. Jerosa da Silva vira o barraco: “Ome, tá fartando grude pras criança e ocê nesse vício mardito!”. José é homem de algum estudo, e o palavreado da mulher o irrita: “Jerosinha, tá fartando rabinho na sua cedilha!”. A discussão chega às vias de fato, às vezes envolve a polícia, que tem mais o que fazer e joga um balde de água fria nos dois.
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Já acostumadas com o qui-pro-quo, as crianças se contentam com o angu de caroço e salsichas, e vão pra escola sem merenda e sem o dever de casa. José foi atendido no pronto socorro, congestionando ainda mais a assistência pública, mas não está sozinho: o jogo do bicho é uma instituição nacional, mesmo sem as bênçãos do governo e a aprovação da Jerosa. Tem mais alguma coisa no Brasil criada por um nobre que ainda funcione? Jogue no jacaré e mantenha a fé!
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Também chamado de loteria paralela, o velho jogo do povo é uma instituição genuinamente brasuca, incondicionalmente aceito e praticado pelo respeitável público desde 1892. Proibido no território nacional em 1946, continua funcionando ousadamente nas barbas da polícia. Portanto, raciocine: que outra invenção genuinamente brasileira resistiu a um rei e dois imperadores, duas guerras mundiais e outras tantas de menor porte, duas ditaduras violentas, inflação renitente, corrupção desenfreada, anarquias, rivalidades, nove mudanças de moeda e três (quase quatro) golpes de estado?
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Se fosse inventado nos Estados Unidos, nosso popular jogo do bicho não seria proibido, pois recolheria impostos, e teria se espalhado pelo mundo, como os cassinos. Se o povo quer se divertir, deixa o povo se divertir. Teriam até outra Las Vegas, com a decoração inspirada nos 25 bichos do nosso zodíaco nacional. Em 2022, os cassinos da cidade do vício pagaram 88 bilhões de dólares em impostos! Como continua crescendo, esse valor deve ter dobrado em 2024. O jogo é vício, mas faz menos mal do que as drogas e engorda a economia.
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No dia da abertura, o zoológico do barão em Vila Isabel recebeu “809 pessoas a pé e 15 a cavalo”, mas não resistiu aos embates da história e desapareceu do mapa. O gato comeu, como dizia o povo. Ironias do destino, o singelo jogo inventado para mantê-lo continua minando a bolsa dos pobres e enriquecendo os contraventores. Chegou à modernidade porque soube se adaptar aos novos cânones: Jogue pelo celular e receba seu prêmio no PIX! Aposte no leão e ganhe um milhão!
