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Sentimento e palavra

A expressão como forma de identidade, resistência e sobrevivência

Um coco nordestino dá conta de que a palavra mata a coisa. Gosto das verdades entranhadas nos ditos e mitos populares e, particularmente, da verificação delas.

Volta e meia tenho encontrado, nas manifestações do nosso congo, intelectuais reclamando do sentido das letras de lamento, e principalmente saudosismo relativos ao tempo de escravização dos negros no Brasil, como: “Ô, ô, ô ô ai que saudade da fazenda do sinhô…” a reclamação é válida e faz todo o sentido, mas me parece que também carece da crítica, por considerar o texto fora do contexto. Afinal, escravo liberto sem casa, terra e trabalho deve mesmo sentir falta da fazenda do sinhô e, se considerarmos que a palavra mata a coisa, fica mais fácil ainda entender porque cantam a dor.

Vinícius de Moraes já dizia que “(…) para fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza”. Não me parece que seja por ser bela a tristeza, mas talvez, porque cantando alivia a dor, afinal, por outro dito popular: “quem canta seus males espanta”.

Em um campeonato da Slam ocorrido em Vitória no final de setembro, no Museu capixaba do Negro (Mucane), também observei que a expressividade dos jovens da periferia trata majoritariamente da dor. Ali deu para perceber, mais claramente, a verdade do coco nordestino. As poesias lançadas expressivamente, diria, “com alma”, pelos jovens, relatando a discriminação, o racismo e o desleixo institucionalizado às populações de periferia, dava àqueles jovens declamantes e também à plateia, uma expressão de alívio do tipo “pronto falei”, quando terminam.

Quero também incluir nesse conceito de palavra, outras expressões que falam, como a dança que dá voz ao corpo, a estética expressa nas artes plásticas, visuais e até na pichação e grafite. Aliás, num diálogo com um grafiteiro, tentando entender sua visão de apropriação do espaço alheio, não ficou difícil compreendê-lo quando me relatou que foi a única atividade que aliviou sua dor e o fez deixar de se mutilar.

Por fim, quero visitar as palavras do dia a dia que nos definem para buscar a relação com o coco. Quando estamos num ambiente público, a definição localiza cada pessoa, lugares preferenciais para idosos, crianças, pessoas com deficiência, animais e, dentre muitas outras definições, mas quero focar no banheiro, para homens e para mulheres. Convenhamos que a definição da identidade sexual de cada pessoa ali definida de forma binária, traz um sofrimento para muitas pessoas fora desse padrão, como a comunidade LGBTQIA+ e os homens e mulheres transexuais com a necessidade de reconhecimento de sua condição.

Bem, parece que o coco está mesmo certo, a palavra mata a coisa, seja encurralando-a num universal, seja nomeando um sofrimento, um sentimento ou uma necessidade. Se identificamos como um nome passa a ser familiar, já não ameaça tanto e nem pesa como angústia. Oferece um direcionamento que, de alguma forma, alivia o peso da coisa em si, agora identificada por uma palavra.

Everaldo Barreto é professor de Filosofia

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