Posso até escrever errado, mas mentir, jamais!

Não conseguindo aprovação em nove vestibulares, Clarinha desistiu do sonho de ser causídica. Tentou ser faxineira, mas estraga as unhas, e garota que se preza tem unhas impecáveis, não importa em qual ofício. Depois de muitas tentativas fracassadas em outras áreas do conhecimento humano, Clarinha decidiu ser influenciadora, um ofício que não exige capital inicial nem curso superior, basta ter bons dentes, que para o resto sempre tem um jeitinho. Um ano depois, Clarinha já contabilizava seu primeiro milhão.
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Era um sábado chuvoso quando Clarinha gentilmente me liga: fiquei rica cobrando em dólares para influenciar as pessoas, e para honrar nossa velha amizade, vou conceder uma entrevista para sua coluna. Fico surpresa, mas com a pulga atrás da orelha – Se é jogo do tigrinho, não aceito. Quê isso, amiga, sou influenciadora de produtos importados, só coisa fina! Aviso que também sou exigente e imponho uma condição – tem que ser sincera, dizer a verdade e nada mais que a verdade.
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Minha coluna é honesta, posso até escrever errado, mas mentir, jamais! Ela jura que tudo nela é verdadeiro, até mesmo os importados de Miami. Combinamos de nos encontrar no Bar Buda, e me decepciono, Clarinha não está presente. Já vou me retirando, cabisbaixa, quando uma voz conhecida me chama: Clarinha no maior requinte, mas só reconheci a voz – no mais, tudo havia mudado, a começar pelos olhos: eram castanhos e agora azul neon.
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Eu a examino de cima a baixo: implante no cabelo, dentes recapeados, plástica no nariz, enchimento no queixo e em outras partes do corpo que não ficaria bem mencionar aqui. Começo com algo clássico: Qual peça de Shakespeare foi mais relevante para a sociedade moderna?… Isso depende do que ele fabrica, jeans ou bolsas?… Já leu Orgulho e Preconceito?… Não sofro de um nem outro, pegaria mal para minha legião de influenciados…Quem foi mais útil para a humanidade, Napoleão Bonaparte ou Napoleão Dinamite?…Pena, mas não tive o prazer de representar nenhum dos dois …
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Pergunto se leu O Pequeno Príncipe e ela se anima, Esse cara era obrigatório em concurso de Miss, mas já está ultrapassado. Eu só leio extrato bancário e etiqueta de roupa de grife. Pode perguntar quem fabrica qual, e se for trend, respondo na hora…Algum filósofo influenciou seu sucesso?…Querida, você está se enrolando em colar de camelô, eu influencio as pessoas, não sou influenciada por ninguém. Seria plágio, entendeu? Filosofia é problema de gente que pensa demais, dinheiro que é bom, neca!
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Achei que era uma indireta para mim, mas como não sou dada a filosofar, me calei. Clarinha não está sozinha: uma nova onda de influenciadores está faturando alto para mudar o mundo. E não precisa apresentar diploma ou confirmação de que entende do material que pretende impor a seus seguidores. Experimentou antes para garantir que realmente funciona? Clarinha se defende, Qual o problema? Eu mostro, e segue quem quiser. Se me pagam, vou em frente, o mundo é vasto e a pobreza é maioria no mercado.
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Pergunto se votou no Trump…É alguém com mais influenciados do que eu?…Se anunciassem que amanhã seria o fim do mundo, o que você faria?…Tiraria meus milhõezinhos do banco, correndo…Beleza é obrigatória?… Não, tenho seguidores feios também… Por que decidiu ser influenciadora?…Para influenciar as pessoas, modéstia à parte…Qual parte?… Estou sem partido…Se seu carro enguiçar no deserto e o fone estiver descarregado, o que você faria? Influenciaria os camelos.