Em defesa da revogação do ensino médio e de um projeto político-pedagógico da classe trabalhadora
É fato que o atual Governo Lula é formado por uma ampla rede de partidos políticos e de pessoas com interesses diversos que se juntaram para enfrentar a extrema-direita. Por sua vez, sente-se a ausência de um projeto de país soberano em curso. O que temos são disputas diárias travadas fora e dentro do governo, que ameaçam/dividem um país deixado em frangalhos pelo último presidente.
Contudo, há um discurso potente de nosso presidente Lula em favor da população pobre, que aponta para a necessidade de políticas públicas com capacidade de construir um país com mais justiça social. O presidente reconhece a importância da política educacional nesse processo, mas falta o conhecimento especializado para entender o real papel da educação no seu projeto político.
Quando Lula expressou que não há possibilidade de revogação do novo ensino médio “sem ter nada para colocar no lugar” (Carta Capital), e que, assim, não revogará a reforma, mas aperfeiçoará, apresenta desconhecimento a respeito de políticas criadas pelo seu próprio partido quando esteve no governo do país. Algumas devem ser consideradas (e estas sim podem ser aprimoradas) como um projeto educacional que de fato respeita os objetivos do ensino médio previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. De forma rápida, posso citar duas políticas.
A primeira se refere às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Resolução CNE nº 2, de 30/01/2012). Esse documento confere o ensino médio como direito social de cada pessoa, e dever do Estado na sua oferta pública e gratuita a todos (Art. 3º); garante os princípios pedagógicos como parte integrante da educação básica; estabelece uma organização curricular flexível, com componentes obrigatórios que favorecem a formação humana integral e integrada, com reconhecimento da diversidade e da realidade concreta dos jovens; apresenta formas de oferta em acordo com a realidade específica vivida pelos jovens brasileiros; integra os conhecimentos gerais e, quando for o caso, técnico-profissionais, realizados na perspectiva da interdisciplinaridade e da contextualização.
As DCNEM propõem as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura como eixo integrador entre os conhecimentos de distintas naturezas, contextualizando-os em sua dimensão histórica e em relação ao contexto social contemporâneo (Art. 13). Ademais, os sistemas estaduais são instruídos pelas Diretrizes a organizarem suas redes de ensino em regime de colaboração e com respeito às necessidades dos estudantes e do meio social e, ainda, devem fomentar alternativas de diversificação e flexibilização, pelas unidades escolares, de formatos, componentes curriculares ou formas de estudo e de atividades, estimulando a construção de itinerários formativos que atendam às características, interesses e necessidades dos estudantes e às demandas do meio social, privilegiando propostas com opções pelos estudantes.
Ou seja, tivemos as Diretrizes que representam a complexidade e a identidade do ensino médio, cuja formulação procura romper a fragmentação e hierarquização da organização curricular sendo, portanto, um avanço qualitativo imenso em comparação com o “novo ensino médio” e com as estabelecidas em 2018. Após o golpe que sofreu nossa democracia em 2016, a educação retrocedeu no bojo de um reformismo neoliberal combinado com o sistema da previdência social e da lei trabalhista que retira direitos dos que vivem do trabalho.
A segunda política educacional é o Programa Ensino Médio Inovador (ProEMI), criado em 2009 pelo Ministério da Educação, e estabelecido pelo Parecer CNE/CP nº 11/2009, com a finalidade de apoiar e fortalecer os sistemas estaduais de educação na adoção de propostas curriculares inovadoras nas escolas de ensino médio não profissionalizantes.
Esse programa integra as ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), como estratégia do governo federal para induzir a reestruturação dos currículos do ensino médio. Parte-se da ideia de que as ações propostas devam ser incorporadas ao currículo das escolas, ampliando o tempo nas instituições e a diversidade de práticas pedagógicas, de modo a atender às necessidades e expectativas dos estudantes do ensino médio.
De acordo com nossas pesquisas empíricas desenvolvidas na rede estadual do Espírito Santo, os principais resultados foram: o recebimento de recursos financeiros significativos; uma gestão que proporcionou experiências de oficinas que valorizaram aspectos cognitivos, culturais e de jogos até então não vivenciadas pelos docentes e seus estudantes; e novas relações de trabalho com mais autonomia e de perspectivas de ensino-aprendizagem. Isso não é tudo o que o Programa se propôs a realizar, mas foi algo novo, simbólico e representativo do investimento estatal no ensino médio, movimento que, com o impeachment da presidenta Dilma Roussef, caminhou para o lado oposto.
Ainda poderíamos citar as experiências ricas e comprovadas do ensino médio ofertado pelas instituições da rede federal (IFs e Cefets), mas não temos dados suficientes para falar sobre essa importante referência para a educação brasileira. Fica o registro, porém, que o modelo das instituições federais pode ser estendido para os estados com o apoio técnico e financeiro da União, desde que o país tenha um projeto societário de inclusão cidadã.
É importante que o presidente Lula saiba que nós temos, sim, um projeto para o ensino médio que precisa ser debatido com a comunidade escolar e os secretários estaduais de Educação a fim de aprimorá-los, estabelecer os compromissos entre a União e os estados, com vistas a garantir o financiamento público justo e necessário para colocar em prática uma política de valorização da escola pública, gratuita, laica e com qualidade socialmente referenciada. Mas, para tanto, é fundamental entender que este “novo ensino médio” é um projeto neoliberal e precisa ser revogado.
Eliza Bartolozzi Ferreira é professora e diretora da Pós-Graduação da Ufes e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais e da Rede Latinoamericana de Estudos sobre Trabalho Docente.