Só sonhos, nada de sono
Morava eu no décimo andar, mais dois de garagem, vista para lugar nenhum. Depois de uma noite insone e mal dormida – não me lembro qual desses – ouço uma voz clamando: Wanda Sily! Devo estar sonhando, pensei, mas o estranho chamado de repetia, cada vez mais alto. Corri à janela e lá embaixo distingo a ilustre figura de Hermoge, o lendário folclorista.
*
Aqui em cima, aceno. Ele de lá: Precisamos conversar. Eu de cima: Pode subir, décimo andar, vou abrir o portão. Ele: Não entro em elevador. Eu: Então suba a escada, vem tomar um cafezinho. Ele: Não subo 200 degraus de escada. Os vizinhos já estavam espiando nas janelas, curiosos com aquela gritaria às sete da matina. Depois de uma noite inquieta e indormida.
*
Desci, curiosa a saber o que tinha ele a falar comigo. Conhecia Hermógenes, como todo mundo no ES, mas sem nenhuma interação social ou literária. Folclore era assunto para a mana Adelzira Madeira. A que veio ele? Uma entrevista para o novo livro que estava finalizando? Um convite para sua famosa bacalhoada sem retirar o sal? Três dias de molho tira o sabor do bacalhau.
*
Encontro o ilustre personagem na entrada, nervoso porque demorei a descer. Grande prazer em conhecê-lo, informo. É mesmo? Se espanta. Tô precisado do telefone do Rogério Medeiros. Foi-se nas brumas da manhã, nunca mais o vi, nunca me citou em nenhuma de suas pesquisas. No entanto, nessa manhã gloriosa, fui pesquisada. Meu avô que dizia, Me acontece cada uma!
*
Um dia, janeiro ou dezembro, não me lembro, o telefone toca. Quem tinha telefone grudado na parede estava acostumado com esse fato – ele toca. Se cobrador ou vendedor, nunca se sabe. Dessa vez, porém, pressenti algo no ar além da poluição habitual. A voz de Carmélia Alves soou como música aos meus ouvidos – Wanda Sily? Falei aqui com as companheiras, você é a melhor cronista do ES. Eu? Quem são as companheiras? Ela: Queria te conhecer, posso ir aí? Deslumbrada, dei meu endereço. E esperei… acho que uns dez anos. Ainda hoje me pergunto a razão daquele telefonema. Kafka explica: Só sonhos, nada de sono.
*
Anos depois, outro telefonema, ainda no fixo, e a voz de Bernadette Lyra me vem pelos fios da Telest, Wanda Sily? Queria te conhecer… Recito o endereço, ponho um disco na vitrola, sacrifico um limão, faço uma limonada. E esperei… Anos depois, ou talvez dias depois, tenho o prazer de conhecer a ilustre escritora, e ouso perguntar: Você disse que iria… Riu, Fui, mas no meio do caminho encontrei alguém mais interessante. Pensei que ia dizer uma pedra.
*
Se o sono não vem, a melatonina resolve. Ou uma taça de vinho. Mas se não dormir, talvez você se inspire para escrever algo grandioso. Depois de uma noite insone e mal dormida, no dia 3 de julho o mundo homenageia Franz Kafka. Que preferia não dormir, “Talvez eu tema que a alma, que me deixa no sono, não seja capaz de retornar”. Se essa insônia crônica motivou ‘A metamorfose’, melhor não dormir.