Empolgados com os versos da cantiga de capoeira que entoa – “Maranhão Maranhão, ô, ô. Que saudade do meu Maranhão” – seguem diversos alunos da Associação de Pais e Amigos dos Especiais (Apae) de Cariacica, referência em todo o Brasil pela estrutura da Associação, além do atendimento e aulas diferenciadas. Uma dessas aulas é a de capoeira e congo, ministrada há 15 anos no local pelo mestre de capoeira Jefferson de Azevedo Fernandes, o mestre Jefinho (foto acima, tocando berimbau).
Enquanto mestre Jefinho toca o berimbau, muitos alunos acompanham nos tambores e nas vozes, todos em ritmo perfeito, cantando de forma tão empolgada que as mães que aguardam os filhos especiais do lado de fora da quadra, onde acontece a aula da capoeira, juntam-se ao redor para apreciar e até arriscar alguns passos de dança. A roda de capoeira é logo tomada, espontaneamente, pelos alunos. Érica é uma delas (foto acima, jogando capoeira), a dançarina oficial das apresentações de roda de samba, congo e o mais inovador de todos, o Fanfacongo – uma mistura instrumental de congo e capoeira, pensada por mestre Jefinho.
Érica faz questão de falar que dança – e dança muito bem. Não à toa ela chama atenção pelos rodopios e passos ritmados que faz no meio a quadra da Apae. Outro que se destaca por tocar muito bem a caixa é o ex-aluno da Apae, Bruno (foto à esq.). É ele quem acompanha mestre Jefinho nas aulas e apresentações. Bruno recebeu alta da Apae e leva uma vida como a de qualquer outra pessoa. “Terminei o ensino médio, agora só falta a faculdade, né mestre?”, indaga ele ao mestre Jefinho. “Será que é difícil entrar na faculdade? É caro?”, continua, mas mestre Jefinho logo avisa que “é caro, mas a gente vai dar um jeito”, num cuidado de pai, que ele mostra através do jeito de lidar com os alunos. sabe o nome de cada um, as idades e até as histórias de vida. Por vezes, aponta para eles e conta algo inusitado, como a história de um cadeirante que já lançou um livro; e outro que é pintor – desenvolveu a técnica de pintar com o pé dentro da Apae.
“Alguns professores me perguntam como faço isso de prender a atenção dos alunos, ensinar mesmo. Falo que é o carinho que tenho por eles. Tem alunos que nem conversam, mas aprenderam a dialogar através da musicalidade da capoeira. Às vezes quando vou dar aula para os autistas, vejo profissionais formados não conseguirem desenvolver nada com os alunos, daí eu chego lá com o berimbau e toco, já chamo atenção; ou mesmo nos movimentos do corpo eles já vão acompanhando. É claro que tem dias que não consigo desenvolver nada lá dentro, daí já procuro um jeito de pedir à mãe para trazer uma roupa de natação que quero levar ele à piscina. É preciso pensar nessas alternativas, tem certos alunos que ficam estressados aqui, não querem conversar, nem sair da sala. Eu pego na mão e chamo para a piscina “vamos com o tio Jefinho“. Sinto que o tratamento com eles depende muito de uma parte espiritual que precisa ser levada em conta”, detalha ele.
Deveras, mestre Jefinho é um pai para todos aqueles alunos e alunas de diversas idades misturados e aos abraços com ele. A aula com a turma é toda a segunda e quarta; enquanto nas terças e quintas ele segue com outros alunos da Instituição. Jefinho hoje faz parte do corpo docente da Apae, ele conta que já deu aulas em escolas regulares, mas na Apae é diferente, desde que entrou não quis mais sair. “Um dia falei que iria sair daqui e fiquei duas semanas sem vir, daí o presidente pediu para eu tirar umas férias e pensar melhor. Com pouco tempo soube que muitos alunos ficaram doentes e voltei”.
Foi através das aulas de capoeira e congo de mestre Jefinho que muitos alunos reduziram em até 70% a quantidade de remédios que tomavam, além de melhorar a coordenação motora e até a fala, já que a capoeira envolve movimentos do corpo e a vocalização musical. Outro fator que chama atenção ao observar uma aula do Mestre é, de fato, o respeito que tem perante os alunos. Quando chama para o alongamento todos vão, quando canta todos entoam juntos e por aí vai. “A tendência é que eles melhorem o comportamento, porque eu cobro isso deles a partir das regras da capoeira. Faço assim porque foi feito isso comigo também. Eu era um jovem complicado, com 13 anos já estava no tráfico de drogas. Foi quando mestre Capixaba passou a fazer o trabalho da capoeira comigo. Ele tentava me acalmar, me dava até suspensão quando eu estava muito afobado – como eu gostava muito de capoeira, a suspensão era a pior coisa. Fiquei um tempo afastado, mas depois tive que voltar porque a capoeira me chamava no sonho! Se não fosse ela na minha vida, não sei o que seria de mim. Não tenho nada não, mas tenho saúde para levá-la”, detalha ele que, a todo o momento, cita Capixaba, o mestre que lhe formou e por quem Jefinho demonstra imenso respeito.
Desde que iniciou o projeto na Apae de Cariacica, mestre Jefinho leva os alunos para diversos festivais e encontros. Segundo ele, por ano, os alunos realizam cerca de 100 apresentações de capoeira, congo e fanfacongo. Um dos eventos que eles participam anualmente é o Festival Nossa Arte, criado pela Federação Nacional da Apaes, em que cada Estado idealiza um festival estadual, inclusive o Espírito Santo. E é comum que a Apae Cariacica volte desses eventos com premiações nas mãos. Nessa lógica eles já viajaram para Santa Catarina, Rio Grande do Sul, além realizarem integração com outras Apaes do Estado.
Mestre Jefinho conta que as outras Apaes já se atentaram para a importância da capoeira e do congo dentro das instituições, por isso muitas delas já incluíram as modalidades em suas programações.
“Falo que sou um 'apaeano'; já faz parte de mim”
“Comecei com seis alunos cadeirantes a dar aula de capoeira, já que os professores de Educação Física, na época, traziam todos os alunos para a quadra e deixavam os cadeirantes na sala. Resolvi trazê-los e comecei a fazer um trabalho onde hoje fica o Centro de Fisioterapia. Eu ficava lá embaixo fazendo desenvolvimento com eles na areia, na cadeira e até no chão. Daí os outros alunos começaram a se interessar e foram vindo, com pouco tempo todos já estavam nas aulas, até alguns professores” foi assim que mestre Jefinho iniciou suas aulas de capoeira na Apae.
Apesar de falar timidamente que não é formado em nenhuma faculdade, a experiência de mestre Jefinho com o que faz é tamanha que, desde que começou na instituição, recebe o reconhecimento de diversas formas: ministrando aulas para professores de educação física e levando seus conhecimentos para diversos lugares. Atualmente, Jefinho não dá só aula de capoeira e congo na Apae, ele conduz também a hidrocapoeira na piscina.
“O meu mestre, o Capixaba, iniciou há alguns anos o trabalho com cadeirantes na academia dele. Eu, sendo aluno, sempre observei e dizia a ele que quando eu tivesse uma graduação, através dele, iria fazer o mesmo. Aliás, tudo o que eu aprendi e que desenvolvo na musicalidade, capoeira, hidrocapoeira, é por meio da orientação do mestre Capixaba. O pessoal daqui pensa mesmo que sou formado em alguma faculdade, mas a formação que tive é a do meu mestre, aquele ali é uma faculdade para mim, que roda o mundo inteiro, tem conhecimento de várias outras culturas e me ensina”, reconhece Jefinho.
Aos 42 anos, e com 27 só de capoeira, mestre Jefinho carrega na cintura a faixa vermelha de capoeira que lhe foi entregue em cerimônia recente por mestre Capixaba. A faixa é apresentada com orgulho, enquanto alguns alunos fazem questão de tocá-la para tentar entender a importância. Mestre Jefinho conta ainda das viagens pelo mundo que irá fazer em breve – e as tantas outras que já fez – sem descartar a possibilidade de continuar na Apae. Ele se considera parte da família ''apaeana“.
Para mestre Jefinho, a Apae, por ser uma instituição que se sustenta por meio de doações, deveria ter mais visibilidade, para que as pessoas pudessem conhecer melhor o trabalho que é desenvolvido ali, conhecer quem são os alunos especiais; e para que tenham dimensão desse trabalho para o processo de desenvolvimento desses jovens.