A EVOLUÇÃO DE SCHILLER COMO AUTOR TEATRAL
A evolução de Schiller no seu teatro é bem demarcada, o autor começa pelo fluxo criativo do Sturm und Drang, com Os Bandoleiros, já na sua vertente de drama revolucionário, deste fluxo hiperbólico caminha com decisão ao drama histórico, evoluindo para o drama burguês, e entra em seguida ao desenvolvimento do drama ideológico, algo que já era de boa cepa em seu período revolucionário, para enfim, já na sua idade madura, chegar com propriedade teatral, e edificar o caminho dos dramas de grandes conflitos individuais dentro de contextos inseridos num fundo histórico.
Novas peças que têm o fito de exaltar moralmente a purificação interior da consciência, a qual deve se sobrepor à fúria cega dos instintos, numa transição da consciência revolucionária e hiperbólica do início de seu teatro para a consumação de uma nova catarse de sentido maduro, que consta em personagens bem definidos por conflitos interpessoais. O drama Maria Stuart, portanto, é uma das obras-primas desta última fase, de um Schiller inteiro em seu projeto teatral.
O CONTEXTO DA PEÇA MARIA STUART
Schiller começou a escrever a peça de Maria Stuart em 1799, tinha o autor então quarenta anos, e concluiu a peça no ano seguinte. O assunto lhe deixava exaltado, como diz: “À medida que prossigo na execução”, escrevia ele a Goethe, “me persuado, cada dia mais, da qualidade trágica do meu assunto, e quero dizer com isso muito especialmente que se percebe a catástrofe desde as primeiras cenas, e que quanto mais parece a ação refugi-la, mais, ao contrário, se aproxima dela com movimento ininterrupto. Haverá no drama, até à saciedade, aquele terror que Aristóteles reclama, e quanto à piedade, encontrá-la-ão também.”
E Schiller segue a missiva: “A minha Maria não provocará o enternecimento, não está isso em minhas intenções, quero tratá-la do começo ao fim como uma criatura de instintos naturais, e o patético que ela produzirá terá antes as características de uma emoção profunda de natureza geral do que as de uma simpatia pessoal a um indivíduo. Não desperta em ninguém nada que se pareça com sentimentalidade; o seu destino é sentir por conta própria e desencadear em torno de si paixões violentas. Só a sua ama sente por ela o que se chama ternura.”
De fato, Maria Stuart ilustra uma ideia, essencial no idealismo schilleriano: “pode-se encontrar a grandeza no sucesso, mas é apenas na infelicidade que se atinge o sublime”. Elizabeth, realista, sacrificando sua humanidade ao poder, triunfa politicamente sobre a rainha da Escócia – mas a verdadeira vitória pertence a Maria Stuart”. Esta moral inversa schilleriana é o sentido da tragédia segundo o mesmo, a história contada pelos vitoriosos olvidam a glória dos que lutaram até morrer, a batalha espiritual do sofrimento está certamente, e também, registrada no livro da vida, embora o processo histórico seja dos privilegiados pela sorte.
Portanto, Schiller tem intenções claras em sua Maria Stuart, refazendo conceitos presentes na Arte Poética de Aristóteles, quando este tematiza filosoficamente a tragédia antiga e grega, quando das ideias motoras de terror e piedade, o filósofo exemplifica o efeito teatral e seu objetivo de expurgo e catarse, de uma renovação instintiva e também artística, quando o teatro se torna veículo não só da arte em si, como da purificação da alma pelo choque.
A MARIA STUART DA PEÇA
Maria Stuart, por sua vez, aparece na peça como personagem não de ternura individualizante, mas como caráter de natureza geral, moldada naturalmente, isto é, como reflexo humano de conflito em contexto, e não de uma interioridade que a torne uma psicologia individual. Pois, nas intenções de Schiller está uma personagem de sentido abrangente e não circunscrito, e de modo certo o instinto natural não tem nada de solipsismo ou de inscrição sui generis, e por ser tal peça algo de fundo histórico, tem esta também, portanto, caráter social, de relações interpessoais.
Os conflitos, então, se dão nesta tessitura coletiva, e não de almas idiossincráticas, embora os dramas interiores se deem entre Elizabeth e Maria, mas sempre nesta tensão entre as duas no contexto amplo da peça. Em torno de Maria Stuart está um mundo sensorial, de paixões violentas, em volta dela está toda a ação, e nela também se dá uma ação, como diz Schiller, com movimento ininterrupto, pois nas peças maduras de Schiller também está a ação vertiginosa herdada do Sturm und Drang e de Os Bandoleiros, não mais hiperbólica, mas ainda sim conflituosa, de caráter trágico, nos moldes conceituais aristotélicos.
O DRAMA TEATRAL E O FUNDO HISTÓRICO DA PEÇA
Embora tenha Schiller lido de modo detido e abundante toda a literatura histórica disponível relativa à desgraçada rainha escocesa, não era, ainda assim, seu propósito escrever uma tragédia histórica, mas levantar a emoção trágica pela via do patético conflito entre Elizabeth e Maria Stuart, evocadas de forma forte em seus respectivos dramas interiores, mas calcadas em um conflito de opostos que dão a tessitura principal de todo o enredo da peça, num fundo histórico da pesquisa schilleriana, mas que tem na tragédia o motor de um drama de conflito já renovado em relação às turbulências românticas das primeiras peças do autor. Schiller, por sua vez, toma grandes liberdades no tratamento histórico de suas personagens e dos episódios que formam a trama do enredo. Pois Schiller não faz de sua peça um documento histórico, mas uma boa peça de teatro, com as exigências próprias de uma peça trágica, e não de um retrato fiel de realismo.
Assim, a personagem Mortimer, exasperadamente romântica, um sinal extravagante posto por vontade do autor, e não como retorno aos ditames do Sturm und Drang, é invenção total do poeta, uma deliberação de Schiller em função da escrita de sua peça. Outras personagens, embora sejam figuras históricas, aparecem na tragédia deslocadas da cronologia real, e psicologicamente deturpadas. Schiller, portanto, não é um autor da História, mas do teatro, e um trágico por excelência. Do Cardeal de Lorena, Carlos de Guise, falecido em 1574, se lê na peça uma carta escrita em 1587, ano da execução de Maria Stuart. Em relação à execução, cumpre advertir que Maria, condenada em outubro de 1586, só foi executada em fevereiro do ano seguinte: esses quatro meses de interstício foram reduzidos a três dias na fabulação da tragédia.
Então, a fidelidade de Schiller está na sua trama, ele não é um retratista de um período histórico, mas um autor em compromisso com a arte teatral, e consciente de seu trabalho como feitor de tragédias teatrais. Elizabeth, por exemplo, ficara noiva do duque de Anjou em 1579, e o noivado foi rompido em 1581, portanto dez anos antes das negociações de que se fala no segundo ato da tragédia. Outra invenção do poeta é o amor entre Maria e Leicester. Muito alterada, por sua vez, é a figura de Talbot, conde de Shrewsbury, que aparece na tragédia como intercedendo pela escocesa e, sacrificada esta, furtando-se a continuar servindo a Elizabeth, quando na verdade histórica permaneceu servidor fidelíssimo da rainha, ou seja, um deslocamento radical feito por Schiller a serviço de sua peça.
Aqui se enumera apenas alguns exemplos de inexatidão histórica ou deslocamentos de personagens para a trama funcionar, movimentos autorais, os quais Schiller fez deliberadamente, e portanto, não o fazendo por ignorância histórica, já que seu trabalho de pesquisa foi profundo, mas cometendo tais deslocamentos por conveniências artísticas, por exigências da peça que fez realizar, já que o que lhe interessava não era a história, mas o drama. Schiller privilegiou o drama, e o fundo histórico a serviço da peça prova, no entanto, que o autor não olvidou de uma pesquisa séria, até mesmo para modelar a peça com personagens históricos reais. Mas a liberdade com a qual o poeta abordou a história foi inteiramente propositada, pois era seu objetivo, mais do que ser exato, extrair todo o drama do conflito entre Elizabeth e Maria Stuart. O conflito principal entre as primas é que fez o sentido de toda a peça, e tais deslocamentos históricos devem ter disso motivados, certamente, por esta trama central.
E tal peça é um trabalho de vulto que teve o impacto histórico denso de um trajeto edificado com propriedade, que lhe valeu o poder de sacudir as plateias no frêmito daquele terror e piedade trágicos da ideia aristotélica matriz a que ele se referiu na carta a Goethe. Depois então de todo o processo histórico, a peça foi muito bem representada pela primeira vez, e ainda mantém o mesmo prestígio sobre o público, não só na Alemanha, como fora dela, em todo o mundo. É uma das obras-primas permanentes do teatro universal, e momento marcante do trabalho de Schiller como autor de teatro.
A TRAGÉDIA DA RAINHA DA ESCÓCIA
Um dos maiores elogios a Maria Stuart é de Madame de Stäel, que considerava a obra “a mais patética e a mais bem concebida de todas as tragédias alemãs”. A peça, escrita entre 1799 e 1800, quando Schiller tinha quarenta anos, é de fato uma obra-prima do classicismo. E, embora o poeta tivesse estudado toda a literatura histórica relativa à tragédia de Maria Stuart, os eventos não constituem mais que um pano de fundo para o conflito entre duas mulheres: Maria Stuart e sua prima, Elizabeth I da Inglaterra. Portanto, é uma peça com o conflito bem demarcado e evidente, pois é na trama das primas rainhas que se dá o centro e o entorno de toda a ação teatral, e temos uma peça bem centrada neste sentido, que não se dispersa em nenhum momento, caracterizando a ação ininterrupta que também estava presente no Schiller do Sturm und Drang.
Ao iniciar-se o primeiro ato, Maria Stuart já está presa. A tensão pela condenação e morte de Maria Stuart é que vai fazer o ambiente principal da peça, e é esta tensão mesma que desencadeia toda a ação da peça, o conflito se dá entre as primas, mas a tensão está toda voltada para Maria Stuart que, por sinal, dá seu nome, pelas mãos de Schiller, à peça. Pois ela escapara de uma revolta na Escócia e viera pedir proteção à prima. Mas Elizabeth, que sempre a temera, resolve encarcerá-la. O pretexto foi um complô organizado por Barry e Babington contra a rainha da Inglaterra e do qual Maria, rapidamente, foi acusada de cumplicidade.
A peça segue a sua trama já na tensão em que o desejo de expiação leva Maria Stuart a aceitar o isolamento; embora inocente do delito do qual é acusada, sendo, no entanto, culpada de outro: consentira no assassinato de Lord Darnley, seu segundo marido, por Bothwell, seu amante. Mas sua resignação não a leva ao conformismo. Ao contrário, Maria deseja a liberdade e sonha com uma entrevista com sua prima, na qual procurará comovê-la e mostrar sua inocência. Bom, estas são as linhas gerais em que se dá a motivação da ação de toda a peça, não entrando aqui em todo o enredo, mas sinalizando o sentido do conflito, e de como a tensão sobre Maria Stuart lhe sobrecarrega por toda a peça.
AS ENCENAÇÕES
Desde a primeira encenação no teatro de Weimar em 1800, que foi dirigida pelo próprio Schiller, Maria Stuart emociona as plateias do mundo. Essa obra-prima do teatro universal foi montada pela primeira vez no Brasil em 1955, pelo Teatro Brasileiro de Comédia. Duas grandes atrizes e irmãs protagonizaram Maria Stuart e Elizabeth, respectivamente Cacilda Becker e Cleyde Yaconis, Ziembinski dirigiu o espetáculo e interpretou o papel de Paulet.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor