Por nome, A Alegria Delicada dos Dias Comuns pode até soar como um livro de autoajuda. E Mara Coradello não discorda disso. “Em alguns pontos sinto que fiz um livro de autoajuda mesmo, tem até a palavra em si presente em um dos textos”. O texto a que se refere é o Quero trazer à tona uma coisa que a auto-ajuda estragou: a felicidade, um desses escritos para se ler e tirar proveito do que ele ensina e instiga com suavidade, como no trecho: que sou simples e viva e que de minha vida a melhor parte é ser toda.
Mas não, A Alegria Delicada dos Dias Comuns pode até ter uma pitada irônica de autoajuda, mas está longe de ser de fato um livro do gênero. Nem poemas nem contos, os textos se enquadram mais em um termo usado por Mara, a “Poesia Cochonilha” – em referência ao um inseto que se extrai dele um corante natural não ingerido por veganos, “como uma poesia que é falsa e verdadeira”, conta Mara ; ou a “Prosa Esquartejada” – uma definição do amigo Rodrigo Melo que Mara atentou-se para a criatividade e verdade do termo. “Fiquei muito chocada com esse termo, porque tento procurar em livros definições sobre poesia e, às vezes, os próprios escritores conseguem juntar duas palavras e criar uma transparência que os acadêmicos com conceitos e conceitos ficam tateando por muito tempo”, explica.
É melhor que seja mesmo a “Poesia Cochonilha” e/ou a “Prosa Esquartejada” para definir a escrita do novo livro de Mara Coradello, uma obra que parece não enquadrar-se facilmente num lado ou no outro. Ela passeia pelos dois. Em momentos como A Mulher Mais Bonita da Cidade, o livro mostra-se conto, prosa mesmo, dessas com histórias detalhadas a serem contadas – e por sinal, belíssimas. Em outras páginas se lida com uma poesia mais enquadrada no conceito, como no texto Marina, Maria, vocês se pintaram? – uma espécie de homenagem a Maria José Coni, de 22 anos, e Marina Menegazzo, de 21. As duas mulheres que realizavam um ‘mochilão’ pela América do Sul. Elas foram assassinadas friamente e ganharam as páginas dos jornais pelo mundo.
“Fiz esse texto para o Sarau Feminista, do qual participei e organizei. As mortes dessas duas mulheres foram chocantes e tiveram duas coisas que me impressionaram, os sacos de lixo em que os corpos foram colocados e a imprensa do mundo inteiro falando que elas estavam 'sozinhas'. Uma mulher com outra mulher, mas elas estavam sozinhas. Isso foi muito sintomático”, recorda Mara sobre o texto, que em suas últimas linhas faz uma chamada: Vamos todas juntas, mulheres, ser multidão. E fazer um óvulo do não.
A exemplo do texto citado acima, as lutas de Mara como mulher, mãe, mestranda, escritora e muitas outras posições, fazem-se presentes em seus escritos de formas por vezes mais explícitas, por vezes mais conceituais, como quando escreveu o livro Escaras e Decúbitos.
No livro ela colocou a voz narrativa toda no feminino e só depois passou para a primeira pessoa do masculino. “Esse homem que narro no livro está em coma. É um mulherengo e é narrado por um investigador que é o Marcos, meu alter ego, além de ter as vozes das mulheres a quem ele amou, mas também feriu. E essa já é uma metáfora simbólica por não existir vozes de homens no livro, visto que o narrador sou eu”, conta a escritora sobre o exercício feito que atenta ao fato de que a maioria dos livros ainda possui vozes masculinas – além de ser escrito por homens.
Outra forma de posicionar suas lutas de fortalecimento à mulher é dando espaço, por assim dizer – ou colocando-se ao lado – a outras mulheres escritoras. Essa proposta fica bem explícita quando Mara (foto abaixo) inclui em A Alegria Delicada dos Dias Comuns uma orelha assinada pela escritora Juliana Frank, uma jovem paulista, dona de uma criatividade ímpar na escrita em que pratica, unindo um ótimo texto com o bom humor, sexo e personagens sempre curiosas e bem construídas.
Juliana foi mal interpretada por jornalistas em sua recente passagem pela Festa Literária De Paraty, a famosa Flip, e teve sua imagem um tanto distorcida. Admiradora do trabalho da escritora, Mara se posicionou a favor de Frank. “A Juliana é um caso de amor na minha vida, gosto muito do livro Meu Coração de Pedra-Pomes. Ela é muito profissional, tem uma maturidade muito grande numa voz infantil; e um conhecimento imenso, mas é modesta, então só poderia dar errado a Juliana na Flip. E eu vim em defesa dela, não pensando em ganhar uma orelha com isso, claro. Mas ela ficou tão grata que surgiu essa orelha e eu só tenho a agradecer”, afirma Mara.
Na orelha, tão delicada e ao mesmo tempo forte, como o livro, Juliana Frank reflete a reciprocidade da empatia com a escrita de Mara, quando diz que “Se for preciso, erguerei mil paredes para Mara pixar. E se de repente acontecer de a polícia levar esta mulher até uma delegacia – dentro de uma masmorra ela escreverá como uma Pitonisa de terno desajeitado”.
Outro ponto que explora o irônico no novo livro de Mara é a contemplação à rotina. As coisas do dia a dia estão todas presentes, mas de forma delicadamente ácida, desde a personagem Cibele comendo seu típico arroz com feijão, farofa e fritas; até a presença não descartável do tédio, no conto Testamento, em que a voz narradora diz: Eu mesma tenho tédio da minha cara de escritora classe média dentes brancos cara lívida. Aliado a isso estão as ilustrações de Cristiano de Rezende, que integram-se aos textos e mostram-se também como narrativa.
A Alegria Delicada dos Dias Comuns é um livro de formato pequeno e de materiais mais acessíveis que, assim, irá possibilitar uma venda mais barata de cada exemplar (o livro possivelmente será vendido por em média R$ 10). Seu lançamento oficial será realizado em breve, talvez ainda em agosto, afirma Mara.