Miguel Pestana nasceu em aldeamento na Capitania do Espírito Santo, driblou os jesuítas e a Santa Inquisição
O aldeamento de Reritiba – atual município de Anchieta (ES) – foi o local de nascimento de Miguel Pestana. O estudo dos registros deixados em sua trajetória de vida, marcada por uma rebeldia permanente contra o sistema colonial, culminaram no livro Feitiço caboclo: um índio mandingueiro condenado pela inquisição, do historiador Luís Rafael Araújo Corrêa.
“Me incomodava um pouco o fato das pesquisas sobre populações indígenas no período colonial serem bastante genéricas. Eu perseguia então alguma trajetória que pudesse evidenciar a vida de algum indígena desta época que fugisse dos padrões e do senso comum e pudesse ser ao mesmo tempo um indivíduo comum e não um dos mais já reconhecidos na história”, conta o doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
Uma das grandes dificuldades para encontrar essas histórias é a falta de registros escritos dessas populações, que possam ter cruzado os séculos, já que poucos nativos dominavam as escrita e os documentos da época escritos por colonizadores raramente consideravam essas populações. Uma das exceções são justamente os registros relacionados com crimes e questões judiciais. Foi a partir daí que Luís Rafael começou a pesquisar a trajetória de Miguel Pestana, especialmente pelos arquivos do Tribunal da Santa Inquisição, que incluíram interrogatórios nos quais ele próprio pôde contar parte de sua trajetória, registrada em textos pelos inquisidores, conservados no Arquivo Nacional Torre do Tombo, em Portugal.
“É uma grande desgraça para a vida dele, mas para nós pesquisadores e historiadores é a chave para acessar sua história. Se ele não tivesse sido preso e perseguido, nunca saberíamos a história dele, dificilmente em Reritiba se encontra algo sobre indígenas específicos”, considera. Segundo os registros, o indígena foi enviado a Portugal, julgado e condenado a trabalhos forçados por lá. Até que numa última reviravolta, a partir da qual já não se tem registros sobre o rumo de sua vida.
Mas voltando ao começo dessa trajetória singular, o historiador observa que Pestana nasceu nos primeiros anos do século 18 em Reritiba, um típico aldeamento indígena sob supervisão de missionários católicos jesuítas. Era filho de indígenas já aldeados e provavelmente teria alguma descendência da etnia Tupinikim, que compunha a maioria da população do local naquele momento.
Recebera uma formação e educação jesuítica, mas para o autor, sua trajetória evidencia que aquela população aldeada não era uma “folha em branco” onde os jesuítas escreviam o que bem entendessem em relação à religião e comportamentos. “Ele era um indivíduo essencialmente rebelde. Costumava fugir da aldeia constantemente e se refugiar em fazendas de indivíduos próximos à região de Reritiba e do aldeamento de Guarapari. Aprendeu o ofício de carpinteiro sob supervisão dos padres e isso lhe dava uma condição diferenciada na sociedade colonial”. Com conhecimento deste ofício, podia vender seu trabalho e sobreviver fora do aldeamento e da alçada das regras dos jesuítas.
“Ele era um indivíduo muito astuto. Era basicamente um sobrevivente. Ficava numa fazenda e quando o sistema de trabalho se aproximava de um mecanismo de escravidão, rumava para outro lugar”, considera o pesquisador.
Embora tenha tido um histórico de idas e voltas com os religiosos de Reritiba, num dado momento ele foge definitivamente para o Rio de Janeiro, se instalando onde hoje é a região da Baixada Fluminense, então conhecida como Recôncavo da Guanabara, local de fluxo de pessoas e mercadorias na rota de acesso às Minas Gerais, onde transitavam várias culturas e a capacidade de controle das instituições coloniais acabava mais difuso.
Isso lhe permitia permanecer num status diferenciado de indígena, dentro da sociedade colonial, mas sem estar aldeado – mesmo sendo de certa maneira um foragido. Trabalhando e se inserindo nesta região, ele chegou ao posto de capitão do mato, o que demandava certo conhecimento dos ambientes das senzalas e um grande prestígio junto aos senhores coloniais, incluindo a permissão para andar armado. Em paralelo, desenvolve sua habilidade como curandeiro e vai se tornando uma espécie de feiticeiro conhecido e reconhecido na região
“Nessas idas e vindas, embora ele tivesse também a formação cristã, ele acaba entrando em contato com outras práticas culturais e elementos mágicos e religiosos”, explica Luís Rafael. Um deles é a carta de tocar, escritos em papel ao qual eram atribuídos poderes sobrenaturais, tradição trazida pelos portugueses. Outro é a prática de carregar uma bolsa de mandinga, por influência de povos negros que haviam sido trazidos ao Brasil por meio de um processo de escravidão. Fazia consultas e vendia mágicas e feitiços e outras coisas ligadas à cura.
Porém, numa visita do bispo à Freguesia onde vivia para verificar a obediência à doutrina e rotina religiosa, acaba denunciado e capturado por práticas que confrontavam a Igreja Católica. Passa então quatro anos como que “esquecido” na prisão de Aljube, no Rio de Janeiro, até ser levado a Portugal para responder à Inquisição pelos crimes dos quais era acusado.
Frente a frente com os julgadores, Luís Rafael considera que Miguel Pestana reafirma sua sagacidade para lidar com a complexidade da sociedade colonial. Vai direcionando o interrogatório para rumos diferentes do que esperavam os inquisidores, que buscavam uma confissão de culpa. Teria sido depois de uma sessão de tortura que acaba admitindo o que queriam os interrogadores, de que teria um pacto com o demônio. “Mas quando ele fala do demônio ele não traz a imagem clássica do manual dos inquisidores, mas a forma com que os missionários haviam traduzido aos indígenas, associando aos espíritos da natureza, ao medo”. Por fim, é condenado, mas não recebe a pena máxima, de morte. Acaba sendo condenado às galés, para realização de trabalho forçado.
Para buscar mais sobre esse contexto de sua condenação, o autor de Feitiço Caboclo pesquisa nos arquivos os condenados da época, seus crimes e etnias, encontrando inclusive o relato um suíço condenado por relações com a Maçonaria, que é julgado e recebe pena similar à de Miguel, mas deixa alguns escritos descrevendo como teria sido o processo de condenação, que inclui o chamado Auto de Fé, um ato público que fazia parte dos ritos da Inquisição em que se liam as sentenças dos condenados, exaltando a religião católica.
Nos trabalhos forçados prestados em Lisboa, ficava aprisionado junto a outra pessoa condenada. E é aí que vem a última reviravolta que mencionamos. Documentos registram que Miguel e esta outra pessoa conseguem fugir, sendo assim alguns dos poucos que conseguiram escapar das condenações da Inquisição. A partir daí, em 1746, perdem-se as pegadas do indígena errante, então com pouco mais de 40 anos de idade. “Provavelmente não foi capturado, porque senão haveria registros oficiais disso”, analisa o historiador.
Para o autor, além de ser uma trajetória surpreendente, com elementos narrativos atraentes, a história de Miguel Pestana ajuda a jogar luz a algumas questões que mostram um pouco da complexidade do sistema colonial. Este não seria a simples execução de um sistema de hierarquias bem definido com base no mandar e no obedecer, mas uma constante batalha dialética entre opressões e resistências, com suas diversas relações de poder.
É a história de Miguel que conecta também Luís Rafael com a Revolta de Reritiba, iniciada no período em que o indígena realizava trabalhos forçados do outro lado do Oceano Atlântico. Do mesmo aldeamento de onde veio Manuel Pestana, vieram outros rebeldes que se voltaram contra o controle dos jesuítas, chegando a fugir e criar uma comunidade na região do Orobó. Mas isso é papo para outro livro. Que aliás, Luís Rafael Araújo Corrêa já escreveu: Insurgentes Brasílicos: uma comunidade indígena rebelde no Espírito Santo colonial, também lançado pela Paco Editorial.