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A tragédia faulkneriana traça seu caminho em Santuário

“Santuário é um romance faulkneriano que se conduz, também, como uma tragédia moderna”

Divulgação

Santuário é um dos romances mais bem conceituados escritos por William Faulkner, um dos grandes escritores do Século XX, pairando ao lado de Marcel Proust, Virgínia Woolf, James Joyce e Franz Kafka. O condado de Yoknapatawpha, por sua vez, no universo romanesco de Faulkner, tem um caráter de terra arrasada que revela toda a degradação sulista dos Estados Unidos de sua época.

Um tipo de desespero espiritual, desamparo existencial e sensação de terror dentro da alma tomam conta dos cenários e personagens do condado, em diversos pontos do universo romanesco de Faulkner. As coisas acontecem sob o influxo de um desencanto completo e nos limites éticos de uma vida pulverizada em demandas ásperas e fora de qualquer perspectiva auspiciosa.

Santuário foi publicado em 1931, também retrata o condado de Yoknapatawpha, e conta a trajetória de Temple Drake, que passa por um processo progressivo de degeneração. Popeye tem uma presença forte durante o romance, e Horace Benbow passa por uma luta inglória por justiça. Um cenário de brutalidade se descortina neste romance sulista de Faulkner que, junto com o romance Absalão! Absalão!, é considerado por alguns como o grande momento da obra de Faulkner.

A narrativa conta a realidade inglória dos desvios de rota e das desrealizações. O material romanesco produzido por Faulkner em Santuário é um desenvolvimento sobre a realidade sulista e mais um giro pelo condado de sua ficção. O romancista coloca estas voltas ao mesmo ponto em diferentes romances e parece que seu leitmotiv ou tema-valise se metamorfoseia em diferentes romances, com diferentes estórias e um mesmo fundo comum existencial. A vida nestes romances giram no mesmo ritmo de desamparo, e isto perpassa toda a obra faulkneriana, diferentes gradações de uma mesma realidade de fundo comum a todos estes romances.

O universo romanesco de Faulkner, que revela realidades terríveis, envolve tanto uma tradição romanesca norte-americana como da literatura universal, que podem vir das tragédias de Shakespeare, dos cenários desoladores de Joseph Conrad, e nos Estados Unidos, da vida degradada em Fitzgerald. A invenção humana em Faulkner é convincente, mesmo sendo produto ficcional absoluto. O romance de Faulkner, aqui também em Santuário, realiza os Estados Unidos sulista na versão própria do romance faulknerian. A narrativa serve a si própria, mas cria este clima de uma realidade palpável do sul norte-americano.

O prosaísmo das situações e as caracterizações de seus personagens tornam esta realidade romanesca faulkneriana bem convincente e semelhante à vida real, como ela se sucede dentro de certos limites, mas a riqueza da escrita e a produção ficcional ganham seu matiz próprio. Faulkner se serve de suas situações e personagens para a realização de sua literatura e, ao fim, ele é um romancista propriamente dito e não um documentarista social ou cultural. Seu retrato fiel dos Estados Unidos sulista aparece em perspectiva própria a um escritor, a serviço da imaginação criadora.

William Faulkner é um escritor e romancista que herda a tradição literária norte-americana e ocidental. Ele cria Yoknapatawpha como um herdeiro de um ambiente sulista que se encontrava em decadência, e seu estilo e método se moldam no fluxo de consciência, e os preceitos deste fluxo são desenvolvidos na ficção romanesca faulkneriana com personalidade própria, de um escritor original, que criou o seu próprio universo de situações e personagens, e que é laureado também por estas razões. O romance moderno, aqui em sua versão norte-americana, ganha musculatura e solidez no caminho literário faulkneriano. A solução de seu fundo comum, por fim, será sempre Yoknapatawpha.

O hibridismo de técnicas no romance de Faulkner é tributário de diferentes fontes e tradições. Quando se fala que o romance tradicional e linear, com o tempo, se revestiu de elementos polifônicos, fala-se do surgimento do romance moderno, que em Faulkner reúne uma tragédia grega modernizada, paráfrase da novela gótica, alegorias bíblicas, a vida industrial sulista norte-americana em versão romanesca, o que mudou nesta cultura que entrou em decadência, e diversos outros elementos laterais e seu elemento novo do fluxo de consciência, que foi a grande transformação empreendida pelos principais romancistas do Século XX.

A polifonia do romance faulkneriano quebra normas estabelecidas, a fluência de Faulkner não faz concessões ou obedece rigorosamente a tradições e ideias preestabelecidas, e não fazer concessões é uma virtude literária que cria uma produção original e nova, que leva a literatura a um novo patamar crítico e de atuação. O fato de Faulkner ter sido laureado em vida é fruto desta sua ousadia formal e temática. Santuário é um romance que não segue normas, Faulkner é um escritor livre.

O livro tem um foco especial nos personagens, e esta é uma característica do romance faulkneriano, o privilégio de cada personagem em seus romances tem um grande peso. Faulkner normalmente trabalha bem e se aprofunda no universo de seus personagens que, embora prosaicos e rústicos, vítimas de uma realidade áspera e pobre existencialmente, em suas descrições ganham nuances que nunca tornam tais personagens unidimensionais do ponto de vista estritamente literário.

A intercalação de personagens em Santuário tem um caráter cruzado, pois personagens descrevem personagens, a perspectiva podendo ser tendenciosa ou justa, portanto, criando a versão que se faz deste personagem visto por um outro olhar, o olhar externo, com todos os seus juízos. Estes personagens são observados e julgados, o prisma é intersubjetivo sobre subjetividades que são circunscritas por juízos de outros personagens.

Como consequência desta narrativa cruzada de perspectivas, temos as elipses que vão e retornam embaralhando as percepções que perpassam Santuário, uma ambiguidade de enredo. O resultado polissêmico é fruto destas perspectivas montadas e remontadas através de seus capítulos, e a desorientação do fluxo de consciência advém aqui justamente de seus dizeres e desdizeres, sem um eixo de verdade absoluta para estes personagens, que se contradizem entre si o tempo todo.

Temple Drake, que foi violentada por Popeye, retrata essa casa que representou na verdade um santuário do mal, e nisto temos um hibridismo com diferentes aspectos interpretados pelas personagens do mesmo lugar, diferentes versões narrativas dentro da narrativa total do romance Santuário, em que podemos ter a metalinguagem como esta interpolação de narrativas que se podem se sobrepor umas às outras, com uma Temple que pode se apresentar aterrorizante, e Popeye como uma ambiguidade e uma incógnita.

Santuário, por fim, não se funda apenas como um tipo de tragédia, é uma fábula do triunfo do mal, e Temple Drake ganha este aspecto sob influxo de Popeye. Popeye vira um trágico em que Temple Drake o conduz ao abismo faulkneriano que o próprio Popeye se propôs a explorar, Santuário é um romance faulkneriano que se conduz, também, como uma tragédia moderna.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog
: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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