No interior da pequena Igreja Católica, os tambores trovejavam e a cantoria e os rodopios inundavam o espaço. De repente, a festa emudeceu. Dona Astrogilda, uma das figuras mais antigas e lendárias do congo capixaba, tomou a palavra em frente à imagem de São Benedito pousada no altar. Congueiros e turistas escutaram com atenção palavras piedosas de devoção ao santo de uma das celebridades da cultura popular capixaba que há 50 anos conduz a banda de congo de São Benedito do Rosário de Vila do Riacho, em Aracruz.
Óculos escuros e ladeada por duas mulheres amparando sua locomoção, Dona Astrogilda é um retrato de fragilidade natural imposta pela idade avançada. Mas ela ainda não sucumbiu. Suntuosamente paramentada, a coroa dourada de Rainha do Congo lhe cingindo a cabeça, foi presença das mais festejadas na 26º Encontro de Bandas de Congos em Regência, realizada domingo (5), na bucólica vila de Linhares, no norte do Espírito Santo, dentro da Festa de Caboclo Bernardo.
O principal evento anual da vila linharense é o primeiro após o crime da Samarco/Vale-BHP. A Boca do Rio Doce ainda está barrenta, o fantasma da lama de Mariana (MG) ainda assombra Regência, mas o evento, mais importante mesmo que o Réveillon e o Carnaval para a economia local, conseguiu revigorar as atividades de comércio e turismo, solapadas desde que a mineradora enlameou o rio.
Praticamente não se ouviu críticas públicas à mineradora, que, por razões óbvias, investiu pesadamente na festa. A exceção foi uma mensagem velada, porém límpida, deixada pelo vocalista da banda Casaca, Renato Casanova, no show da noite de sábado (4): “Regência está passando por uma fase um pouco complicada, mas a gente sabe que quem fez o que fez, vai ter que pagar, vai ter que pagar”, disse ao microfone. Foi ovacionado.
Como no ano passado, o roteiro encontro de bandas foi alterado para iniciar na praça da igreja e terminar na Pousada de Dona Mariquinha. O encontro começou duas décadas atrás na casa de Dona Mariquinha. Os congueiros chegavam, almoçavam e depois seguiam em cortejo até a praça da igreja, onde então faziam o ritual devoto de entrar e sair da igreja para celebrar São Benedito.
Mas Dona Mariquinha se mudou para a casa de filhos e netos na Bahia em função do quadro de saúde delicado, razão pela qual o roteiro mudou desde o ano passado. Agora o encontro acontece na praça e termina na pousada de Dona Mariquinha. Ano passado funcionou, as bandas saíram em um cortejo de despedida pela Avenida Caboclo Bernardo. Já este ano não funcionou.
As bandas chegaram por volta das 8h e saíam uma a uma em um cortejo de chegada desde a Pousada Lady Lú até a praça da igreja, onde armavam um festejo de sons sob a tenda montada em frente à Casa do Congo de Regência até a hora do almoço.
As rodas dispersas recreavam olhos e ouvidos com as cores vivas dos paramentos, o som dos tambores, casaca e pandeiros e a melodia das toadas. Turistas se juntavam às rodas e, quando não se rendiam à dança, contemplavam o show com um balanço tímido de cabeça e ombros. Depois, uma a uma, as bandas se dirigiam à igreja para festejar São Benedito.
É um dos episódios mais emocionantes. As dimensões singelas daquela construção simples de 1950 concentram o som de vozes e instrumentos e multiplicam especialmente a potência percussiva dos graves dos tambores. O ouvinte entra em um mundo à parte. Homens de mãos calejadas espancando o couro dos tambores e mulheres de saias rodopiando estandartes contra o teto da igreja conduzem a catarse coletiva e revelam a força devota dos congueiros a São Benedito.
Além da banda de congo de São Benedito do Rosário de Vila do Riacho, outra presença marcante foi o Reis de Boi de Mestre Nilo (foto capa), um dos mais antigos do Espírito Santo e um dos poucos sobreviventes no município de Conceição da Barra. A chegada da Aracruz Celulose e da conseguinte cultura do eucalipto dispersou os quilombolas da região e arrasou a existência dos grupos de Reis de Boi. O município chegou a contabilizar mais de uma centena de grupos, que, hoje, não chega a uma dezena.
Bandas de congo tradicionais de Vitória também prestigiaram o encontro, como a Panela de Barro de Goiabeiras Velha e a Amores da Lua, de Santa Marta. Pela primeira vez a Amores da Lua foi sem Mestre Reginaldo Sales, morto em novembro do ano passado aos 92 anos. Como Dona Astrogilda e Dona Mariquinha, Mestre Reginaldo é figura ilustre da cultura popular capixaba.
Participaram do encontro 24 bandas de congo e uma congada de Minas Gerais. Uma das grandes ausências foi a banda de congo dos índios Tupinikim.
As ausências provocaram críticas. Após o almoço, cada banda se apresentou na praça para depois seguir em um cortejo de despedida até a pousada de Dona Mariquinha. Ao microfone, a filha de Dona Astrogilda fez um manifesto dos grupos folclóricos. Fez críticas ao prefeito de Aracruz, Marcelo Coelho (PDT), e às prefeituras de Fundão e Linhares por falta de apoio ao transporte das bandas. “Poderíamos ter o dobro de grupos, que não puderam vir por falta de apoio municipal”.
Também não poupou o governo do Estado, cobrando a presença da Secretaria de Turismo e do governador. “Cadê o nosso governador?”, questionou.
O encontro deste ano evidenciou como a ausência de Dona Mariquinha interfere diretamente no roteiro da festa. Por algum motivo, o cortejo de despedida não funcionou e as bandas saíram da praça direto para os respectivos ônibus, estacionados nas proximidades. Claro que o fato não diminui a beleza da festa, mas destaca a falta que faz a mulher que é a grande figura da cultura popular local e uma das mais proeminentes do estado.