Durante nossa conversa, perdi a conta de quantas vezes Antonio Carlos Amancio Pereira apontou para o próprio braço mostrando os pelos arrepiados. Quando se fala de capoeira, ele vive à flor da pele. Mesmo tendo estado afastado por muito tempo, quando trabalhava no interior, ou desde janeiro, quando rompeu os ligamentos. Não poder jogar é duro, mas Amancio sempre esteve próximo do jogo por seu dom de compositor e cantor.
“O gostoso da música é fazer a melodia para animar a roda, fazer o pessoal jogar mais bonito. Porque quando a música é boa e tem vibração, o jogo é diferente, faz toda diferença. O compositor está sempre em busca disso, fica buscando uma melodia”, diz. Sua inspiração costuma vir sem esperar, como quando conversamos sobre a mágica da roda de capoeira. “Eu quero é sentir cheio de mandinga no ar. Opa, isso dá uma música…”, e continua cantarolando: “Eu quero sentir cheiro de mandinga no ar, eu quero sentir cheiro de mandinga no ar…”
Assim Amancio define os ingredientes de uma boa música na capoeira: um pouco de história, um pouco de leveza e um pouco de animação que contagia. “Na capoeira é legal que as pessoas repetem o coro, que deve ser curto e fácil”.
O Mestre Capixaba, fundador do grupo A.C.A.P.O.E.I.R.A., professor e amigo de longa data de Amancio, foi o primeiro incentivador – e ainda o é. “Tem muita música que é fácil de aprender, mas não tem muito conteúdo. A música de Amancio tem como responder porque o coro é fácil de pegar. Depois o resto da letra é mais difícil porque tem muita história”, diz o mestre. Histórias como a da morte do capoeirista Besouro Mangangá, contada pelo compositor em Faca de Tucum.
Amancio foi um dos primeiros alunos de Mestre Capixaba (foto à esquerda) quando este voltou ao Espírito Santo depois de morar no Rio de Janeiro, no anos 80.
Recentemente, estiveram juntos na Europa. Mesmo sem poder jogar, Amancio lecionou a parte de musicalização em cidades da Alemanha, Grécia e Suíça.
A participação surgiu num encontro de velhos amigos da capoeira, quando Amancio se animou a acompanhar Capixaba, levando na bagagem uma música nova que havia composto, apresentada publicamente anteriormente apenas uma vez em Vitória. “Acorda marinheiro / saveiro vai navegar/ Embarca marinheiro / que o saveiro vai zarpar”, diz o refrão, que pega fácil. Nas primeiras estrofes, cita os locais de onde os escravizados saíam e suas etnias, nas segundas, locais onde chegaram no Brasil. Nas seguintes, lembra dos grandes mestres dos primórdios da capoeira até hoje.
“O grande teste da música é na roda”, diz Amancio. Na capoeira, a tradição e o conhecimento são transmitidos principalmente por meio da oralidade. Os discos gravados servem de memória, mas a difusão das canções se dá principalmente por meio das rodas, as que marcam são lembradas e tocadas novamente. E assim vai…
Mestre Capixaba considera que como na música popular, muitos capoeiristas produzem canções em grande quantidade, mas que logo serão esquecidas. São poucas as que ficam depois de certo tempo. “Amancio tem umas cinco ou seis que até hoje são tocadas nas rodas”, lembra o mestre.
E tamanha a emoção do compositor ao chegar em rodas duas ocasiões, em países que não falam português, e ouvir suas canções sendo tocadas e cantadas ao vivo. Nestes lugares, Amancio encontrou uma energia e dedicação que lembravam os tempos de juventude nas rodas de capoeira no Saldanha da Gama. Os estrangeiros também estão animados a compor, mas enfrentam o desafio da extra de não serem nativos da língua portuguesa, que embala as canções de capoeira mesmo no exterior.
O tour europeu acabou por relembrar os 30 anos da primeira viagem internacional de Amancio, para os Estados Unidos em 1988, onde foi encontrar o Mestre Capixaba, que realizava cursos por lá. Nessa ocasião, ainda no avião, surgiu uma música, que ensaiaram no hotel e cantaram pela primeira vez nas rodas de capoeiras em terras gringas.
O promotor capoeirista
As letras de Amancio têm duas marcas que traz de muito tempo de sua trajetória familiar. A curiosidade em conhecer a história do negro e a indignação com a escravidão, herdada também de seu bisavô, Amancio Pereira, um dos primeiros abolicionistas do Espírito Santo. Viajou por África, conheceu portos de onde saíam negros capturados e também em Portugal, onde partiam as caravelas. A outra parte vem da infância vivida entre viagens à fazenda do avô em Alegre e às dos tios em São Mateus, de onde lembra do aprendizado nas barrancas do Rio Cricaré, onde chegaram muitos escravos.
Na roça, conta que gostava de estar no meio dos peões, ouvir suas histórias, entender seu modo de vida e contemplar a natureza. “Não ficava na sede, ficava na casa do vaqueiro para ver eles tocando gado. Conheci um senhor que dizia que sua mãe havia sido escrava”.
O menino cresceu e virou jurista, formando a terceira geração da família nesse caminho. Foi integrante do Ministério Público e serviu como promotor e procurador em diversos município como São Mateus, Linhares, Cariacica e Vitória.
Em paralelo, entrou no mundo da capoeira. ”No começo foi difícil querer ser promotor de justiça e jogar capoeira na praça. Mas é impressionante como tem uma coisa dentro da outra”, afirma. Ele vê paralelo entre o que foi sua profissão e seu esporte. “São coisas tão diferentes, mas ao mesmo tempo tão conectadas. O que se exige de um capoeirista e de um membro do Ministério Público é atenção, olhos e ouvidos abertos, a mente pensando rápido”, compara. Dizer que a capoeira influenciou em seu trabalho como jurista, lhe parece exagero. “Mas a gente bebe da fonte dos ensinamentos que ficam”, conta.
A aposentadoria no mundo das leis parece ter trazido novo fôlego para o compositor e cantador de capoeira. Alguns de seus sucessos como Faca de Tucum, Eu Vou Jogar Capoeira e Eu Queria Morar na Bahia foram gravadas de forma dispersa em discos de mestres de capoeira de outros estados. Agora a ideia é juntar suas principais composições e ir para os estúdios gravá-las.
Pergunto sobre elementos e influência do Espírito Santo em suas canções. “Está no ar que eu respiro. É quântico”, define Amancio.