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Ana Martins Marques e suas influências

A poesia de Ana Martins Marques tem como tema principal o trabalho de representação das coisas, sua figuração, um modo de redesenhar poeticamente objetos e coisas que aparentemente estão tomadas em si mesmas como suficientes, acabadas, contidas num mundo objetivo bem resolvido, e que na poesia de Ana ganha contornos novos de uma percepção aguçada e sensível aos sinais.

A metapoesia também domina o cenário criado por Ana e seus recursos estéticos e metafóricos trabalham numa imagem material do poema, um objeto também tomado como os outros, o poema-coisa. E a tentativa sintética de Ana é de condensação da experiência totalizante do mundo nesta cápsula chamada poema. A linguagem aqui opera através do poema a experiência do mundo e sua síntese num espaço compactado, o poema que lhe enuncia.

A tematização sobre objetos na poesia vem de Rilke, Drummond, Francis Ponge, pois Drummond em Alguma Poesia coloca já a figuração das coisas, num tom familiar e prosaico, e que viraria uma grande influência e um dos marcos da poesia brasileira moderna e contemporânea (aqui evito a reverência excessiva ou o dogma, pois Drummond era amplo e diverso, também foi o poeta de Claro Enigma).

Mas, a experiência de Drummond neste sentido aberto pela Alguma Poesia se amplia com Lição de Coisas, em 1962, em meio a uma movimentação na poesia brasileira de tentativa de recuperação lírica e ruptura com o concreto e circunstancial, mundo de coisas prosaicas reafirmado e reforçado em Lição de Coisas. Tal poesia prosaica também ganhou portadores originais como Manuel Bandeira e o sui generis Manoel de Barros.

Ana Martins Marques se insere na poesia sobre as coisas com influência direta de Drummond e dialogando com Bandeira. Na estreia de Ana com Arquitetura de Interiores, esta exploração das coisas vai ao máximo, poemas curtos e com carga forte de condensação, na Arte das Armadilhas, seu segundo livro, esta tematização das coisas se repete e culmina com O Livro das Semelhanças em que o leitmotiv será o objeto livro, a poesia em seu estado mais referencial, tirando o universo da declamação.

A metapoesia, em O Livro das Semelhanças, joga com a semelhança e espelhamento entre os poemas e o objeto-livro, os poemas viram objetos também, a materialidade é um reflexo da poesia de Ana neste livro, e aqui temos um paralelo possível com Mallarmé que toma o poema como artefato. Os objetos na poesia de Ana também servem como delimitação de um espaço subjetivo, este contato do sujeito poético com seu poema-coisa é quase uma experiência de máxima condensação, em que a unidade ganha aqui a relação do poeta com o mundo, e colocando as coisas diante de sua subjetividade, e nesta tensão nasce o poema.

Ana Martins Marques tem a sua poesia possivelmente dividida em duas frentes, uma que cria imagens e realidades, poemas que se concentram na imagem de si, um meta-poema, poemas condensados e que podem ser denominados de circunstanciais. A segunda frente da poesia de Ana é a que abre a subjetividade, em que a memória tem papel importante, adentrando a linguagem de modo mais profundo que seus poemas objetivos, configurando poemas que manifestam pensamentos.

POEMAS:

VISITAS AO LUGAR-COMUM

SEM TÍTULO: O poema se fragmenta na sua visão, desde a saída, no que temos: “Quebrar o silêncio/e depois recolher/os pedaços”. A vista limitada, parcial, nebulosa, uma crise da percepção se instala, agônica: “Pagar para ver/e/receber/em troca/vistas parciais”. Decai então na palavra também barrada e limitada, no que temos: “Dobrar a língua/e ao desdobrá-la/deixar cair/uma a uma/palavras/não ditas”. E a perda da noção de tempo, a sensação de desorientação, no que segue: “Perder a hora/e encontrá-la depois/num intervalo/de teatro”. A presença do abismo se insinua, como um fundo, uma garganta, que chama à escuridão: “Dar à luz/e então sondar/num átimo/de abismo” (…) “a própria/escuridão”. A loucura, a desorientação em seu estado total, toma o poema, a poeta aqui perde a cabeça: “Perder a cabeça/e então buscá-la/nos últimos lugares/onde esteve”. E segue o périplo, de retomadas, circunvoluções e rupturas: “Tirar fotografias/e depois devolvê-las/àqueles de quem as tiramos” (…) “Cortar relações/e depois voltar-se/verificar se o que restou/suporta/remendo”. O tempo e sua espera, a angústia do tempo da espera e o amor profundo, mas que não se afunde, que sempre dê pé: “Esperar horas a fio/e então desvencilhar-se/das coisas tecidas na espera” (…) “Amar profundamente/mas testar/volta e meia/se ainda/dá pé”. O risco como a melhor forma de examinar o traçado, a poeta aqui arfante, no entanto, é agraciada, pois pode ver seu feito, seu traçado, seu rastro: “Correr riscos/e ao fim/arfante/da corrida/voltar-se/para avaliar/o traçado”. E aqui o poema finaliza com a imagem da queda, mas num viés de bom humor, numa sequência em que a poeta se junta a todos que caíram, no que temos : “Esperar junto àqueles/que caíram em si/que caíram na risada/que caíram no ridículo/que caíram do cavalo/que caíram das nuvens/que a noite/caia”. O poema então que parte do fragmento ao fim se quebra, e o discernimento que enfrenta os cacos, o poema se estilhaça: “Quebrar promessas/e ao recolher os cacos/discerni-los/entre aqueles/do silêncio/quebrado”.

O LIVRO DAS SEMELHANÇAS

SEM TÍTULO: O poema aqui começa numa operação de esquecimento e de destruição da memória: “Podemos atear fogo/à memória da casa/desaprender um idioma/palavra por palavra/podemos esquecer uma cidade”. A ideia de pertencimento aqui é invertida, ganhando contorno contra-intuitivo: “As casas pertencem aos vizinhos/os países, aos estrangeiros/os filhos são das mulheres/que não quiseram filhos/as viagens são daqueles/que nunca deixaram sua aldeia”. O poema flerta aqui com o conhecimento superficial e de gabinete, sem vivência, no que temos: “Aqueles que só conheceram o mar pelo rumor que/faz um livro/quando tomba/os que só sabem da floresta o que ensina o farfalhar/das páginas/os que veem o mundo como um grande volume ilustrado” (…) “os que conhecem as cidades apenas pelo nome” (…) “Pintores que pintam apenas títulos de quadros/Fotógrafos que só fotografam fotografias/atores com seus figurinos de palavras” (…) “viajantes de mapas, turistas de nomes de cidades/enamorados de nomes de mulheres/pais de nomes de crianças”. E o mundo real, empírico, é sempre mais duro e difícil, do qual não se foge, e o poema lhe dá a face e a importância devida, no que temos: “É mais difícil esconder um cavalo do que a palavra cavalo/É mais fácil se livrar de um piano do que de um sentimento/Posso tocar o seu corpo mas não o seu nome”. E do real a poeta indaga novamente o plano da linguagem, o que se pode dizer do que se é concreto, no que temos : “seria preciso então entender o beijo como um/elemento gramatical/acrescentar as palavras entre os movimentos básicos/da dança/Quanto do desejo mora/na palavra desejo?”.

SEM TÍTULO: O poema enuncia uma relação interessante, em que a poeta flerta com seu amante-interlocutor, e o poema começa bem lúdico, no que temos: “Estou no dia de hoje como num cavalo/você está nas suas roupas como/num navio/estamos na cidade como num teatro numa floresta/na água” (…) “a tarde de terça é uma feira de bairro/nos encontramos quase por descuido/à mesa do café com sua toalha xadrez/de frente para o cinema contínuo do mar”. A poeta então deslinda toda a sua admiração deste seu amante que ela vê como um tipo ideal inteligente, no que vem: “você desdobra a tarde como um guardanapo/lançado ao colo/você conhece os modos no que se refere às tardes/você sabe usar/os talheres da tarde”. O conhecimento deste amante é enunciado com orgulho pela poeta, e o poema fica bem interessante mesmo, no que vem: “você conhece muitas coisas você sabe falar/sobre as coisas como esses bichos que conhecem/desde sempre as rotas ancestrais/como os pássaros que trazem impressos no corpo/os mapas migratórios você conhece a língua do amor/que eu soletro tão mal”. A poeta então confia seu amor a este amante que conhece estes arcanos melhor do que ela, ao menos é o que ela supõe.

SEM TÍTULO: O poema enuncia as indagações sobre o tempo, mas aqui não se trata do tempo típico presente, mas os mais complexos e confusos, passado e futuro, no que segue: “O passado anda atrás de nós/como os detetives os cobradores os ladrões/o futuro anda na frente/como as crianças os guias de montanha/os maratonistas melhores/do que nós/salvo engano o futuro não se imprime/como o passado nas pedras nos móveis no rosto/das pessoas que conhecemos/o passado ao contrário dos gatos/não se limpa a si mesmo”. A impressão que temos do passado é impossível sobre o futuro, o passado não se muda, não se faz limpeza do passado, o futuro, um maratonista que anda na frente, não é identificável, é mais um anelo que se tem, um plano, na frente corre o cão, e o passado é a criação do mundo : “pense em como do lodo primeiro surgiu esta/poltrona este livro/este besouro este vulcão este despenhadeiro/à frente de nós à frente deles/corre o cão”.

A IMAGEM E A REALIDADE: O poema inverte Manuel Bandeira, o arranha-céu reflete na poça para baixo, o poema é uma experiência sensorial, no que temos: “Refletido na poça/do pátio/o arranha-céu cresce/para baixo/as pombas – quatro –/voam no céu seco/até que uma delas pousa/na poça/desfazendo a imagem/dos seus tantos andares/arranha-céu/agora tem metade”. O poema encerra o desmanche da imagem e o que lhe resta.

AMOR NÃO FEITO: O poema enuncia aqui de forma delicada o fenômeno comum do amor que não se consumou, nada mais natural e corrente na vida comum e mortal, no que temos: “No centro do que lembro ficou/o amor não feito:/o que não foi rói o que foi/como maresia”. E a indagação da poeta é universal, no que vem: “o que fazer do desejo/que não se gastou?/alegria não sentida amor não feito”. A indagação então fica refletida no que restou, como uma chave de ouro meio indesejada, no que temos: “como parece banal agora/o que o barrou/compromissos decência covardia/não foi nada disso que ficou/mas precioso aceso/e perfeito/restou o desejo do amor/não feito”.

POEMAS:

VISITAS AO LUGAR-COMUM

SEM TÍTULO

I

Quebrar o silêncio

e depois recolher

os pedaços

testar-lhes o corte

o brilho

cego

 

II

Pagar para ver

e receber

em troca

vistas parciais

uns cobres

de paisagem

 

III

Dobrar a língua

e ao desdobrá-la

deixar cair

uma a uma

palavras

não ditas

 

IV

Perder a hora

e encontrá-la depois

num intervalo

de teatro

nos cantos empoeirados

do domingo

entre um telefonema e outro

dentro do táxi

 

V

Dar à luz

e então sondar

num átimo

de abismo

– como um espeleólogo

um cosmólogo

um cenógrafo

um guarda-noturno –

a própria

escuridão

 

VI

Perder a cabeça

e então buscá-la

nos últimos lugares

onde esteve

dentro da touca

de banho

sobre o travesseiro

entre os joelhos

entre as mãos

na casa demolida

da infância

sobre suas coxas

mornas

ainda

 

VII

Tirar fotografias

e depois devolvê-las

àqueles de quem as tiramos

à mulher fora de foco

em seu vestido violeta

à casa de janelas verdes

às paisagens

tomadas emprestadas

à casca

de cada coisa

aos vários ângulos

da Torre Eiffel

ao cachorro morto

na praia

VIII

Cortar relações

e depois voltar-se

verificar se o que restou

suporta

remendo

demorar-se

sobre a cicatriz

do corte

IX

Esperar horas a fio

e então desvencilhar-se

das coisas tecidas na espera

dos ponteiros do relógio

cada um mais lento que o outro

dos pelo menos dez cigarros

das poltronas de mogno

uma delas

vazia

X

Amar

profundamente

mas testar

volta e meia

se ainda

dá pé

XI

Correr riscos

e ao fim

arfante

da corrida

voltar-se

para avaliar

o traçado

XII

Chegar em cima da hora

e espiar

de relance

como quem levanta o tapete

em casa alheia

o que ficou

por baixo

XIII

Esperar junto àqueles

que caíram em si

que caíram na risada

que caíram no ridículo

que caíram do cavalo

que caíram das nuvens

que a noite

caia

XIV

Quebrar promessas

e ao recolher os cacos

discerni-los

entre aqueles

do silêncio

quebrado

 

O LIVRO DAS SEMELHANÇAS

 

SEM TÍTULO

Podemos atear fogo

à memória da casa

desaprender um idioma

palavra por palavra

podemos esquecer uma cidade

suas ruas pontes armarinhos

armazéns guindastes teleféricos

e se ela tiver um rio

podemos esquecer o rio

mesmo contra a correnteza

mas não podemos proteger com o corpo

um outro corpo do envelhecimento

lançando-nos sobre a lembrança dele

 

As casas pertencem aos vizinhos

os países, aos estrangeiros

os filhos são das mulheres

que não quiseram filhos

as viagens são daqueles

que nunca deixaram sua aldeia

como as fotografias por direito pertencem

aos que não saíram na fotografia

– é dos solitários o amor

 

Aqueles que só conheceram o mar pelo rumor que

faz um livro

quando tomba

os que só sabem da floresta o que ensina o farfalhar

das páginas

os que veem o mundo como um grande volume ilustrado

no entanto sem legendas sem índices remissivos

sem notas explicativas

os que conhecem as cidades apenas pelo nome

e acham que cabem no nome muitas coisas

inclusive certas ruas vazias de madrugada

as casas prestes a serem demolidas

os mesmos talvez que pensam que um corpo pesa tanto

 

na cama quanto no pensamento

aqueles como nós para quem o desejo

não é prenúncio mas já a aventura

os que se reconhecem na tristeza

das piscinas vazias à beira-mar

 

Pintores que pintam apenas títulos de quadros

Fotógrafos que só fotografam fotografias

atores com seus figurinos de palavras

com sua maquiagem de palavras

num cenário de palavras

viajantes de mapas, turistas de nomes de cidades

enamorados de nomes de mulheres

pais de nomes de crianças

até que seus próprios nomes morrem nas campas

 

É mais difícil esconder um cavalo do que a palavra cavalo

É mais fácil se livrar de um piano do que de um sentimento

Posso tocar o seu corpo mas não o seu nome

É possível terminar uma frase com um beijo assim

Como é possível

encerrar subitamente uma dança com uma palavra

seria preciso então entender o beijo como um

elemento gramatical

acrescentar as palavras entre os movimentos básicos

da dança

Quanto do desejo mora

na palavra desejo?

 

SEM TÍTULO

Estou no dia de hoje como num cavalo

você está nas suas roupas como num navio

estamos na cidade como num teatro numa floresta

na água

 

a tarde de terça é uma feira de bairro

nos encontramos quase por descuido

à mesa do café com sua toalha xadrez

de frente para o cinema contínuo do mar

no vagão deste mês setembro sereia sinuosa

era quente o dia era o equívoco das estações

era a música pequena da memória

estou no dia de hoje como num casaco largo demais

estou no país desta tarde como as mangas

da sua camisa branca

você desdobra a tarde como um guardanapo

lançado ao colo

você conhece os modos no que se refere às tardes

você sabe usar

os talheres da tarde

estou desconfortável no meu nome estou

na antessala do amor estou na estação

da espera queria distrair a morte

você conhece muitas coisas você sabe falar

sobre as coisas como esses bichos que conhecem

desde sempre as rotas ancestrais

como os pássaros que trazem impressos no corpo

os mapas migratórios você conhece a língua do amor

que eu soletro tão mal

 

SEM TÍTULO

O passado anda atrás de nós

como os detetives os cobradores os ladrões

o futuro anda na frente

como as crianças os guias de montanha

os maratonistas melhores

do que nós

salvo engano o futuro não se imprime

como o passado nas pedras nos móveis no rosto

das pessoas que conhecemos

o passado ao contrário dos gatos

não se limpa a si mesmo

aos cães domesticados se ensina

a andar sempre atrás do dono

mas os cães o passado só aparentemente nos pertencem

pense em como do lodo primeiro surgiu esta

poltrona este livro

este besouro este vulcão este despenhadeiro

à frente de nós à frente deles

corre o cão

 

A IMAGEM E A REALIDADE

                                   Refletido de um poema de Manuel Bandeira

Refletido na poça

do pátio

o arranha-céu cresce

para baixo

as pombas – quatro –

voam no céu seco

até que uma delas pousa

na poça

desfazendo a imagem

 

dos seus tantos andares

arranha-céu

agora tem metade

 

AMOR NÃO FEITO

No centro do que lembro ficou

o amor não feito :

o que não foi rói o que foi

como maresia

 

casa onde não morei país invisitado

praia inacessível avistada do alto

o que fazer do desejo

que não se gastou?

 

alegria não sentida amor não feito

prazer adiado sine die

palavra recolhida como um cão

vadio gesto interrompido beijo a seco

 

como parece banal agora

o que o barrou

compromissos decência covardia

não foi nada disso que ficou

 

mas precioso aceso

e perfeito

restou o desejo do amor

não feito

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

 

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