“Andora significa ‘dançar junto’, em tupi guarani”, diz o professor Antônio Carlos Moraes, do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Estado (CEFD). Ele é o coordenador da Cia. De Dança Andora, que este ano completa 10 anos e já representou o Espírito Santo em países como Itália, Portugal, França, Chile e México.
Estamos na sede do grupo, uma sala conhecida como “Toca do Goaimun”, nome incomum para um centro de estudos dentro da universidade. Nas paredes, cartazes com grandes fotos, discos e livros temáticos e várias peças de artesanato do Brasil e do Mundo, presentes ganho de outros grupos de folclore em festivais, com o Festival do Folclore de Olímpia (SP), em que já representou o Estado por seis vezes.
Foto: Juliana Lima
“Defendo a pedagogia da festa, que é um ramo da educação”, diz o professor. Olho curioso e espero uma continuação da resposta. “A gente defende que que as crianças aprendem muito mais com as festas do que propriamente com aquele conteúdo escolar. É nas festas que a questão da identidade rola, a produção das relações sociais. Quando a escola se envolve na festa da cidade, o professor fica obrigado a se envolver também”.
Mineiro de família que participava das festas de Congada, Antônio Carlos lecionou no Rio de Janeiro antes de chegar à Ufes. Aqui desenvolve trabalhos na área de danças e cultura popular. Visitou os 78 municípios capixabas pesquisando as festas populares. A ideia inicial de criar materiais pedagógicos para as escolas abordarem o tema se expandiu a partir da provocação sempre saudável dos jovens estudantes: “A gente quer dançar também”, propuseram. E assim começaram ensaios, convites e logo um grupo de Dança estava formado, reproduzindo na cidade e nos palcos os bailes populares.
O Andora, além de representar uma companhia focada nas danças populares do Espírito Santo e do Brasil, também está envolvida no chamado tripé da universidade: pesquisa, ensino e extensão. Na extensão, além da companhia de dança que ensaia duas vezes por semana visando a realizar apresentações, também há um grupo sênior e um grupo de dança livre, em que as aulas não buscam preparar para espetáculos. Nesses projetos, a participação é gratuita e aberta a toda comunidade, independente de vínculos com a Universidade.
Foto: Juliana Lima
Na área de pesquisa, a relação dos professores com as festas nas comunidades tradicionais é um dos temas investigados. “A escola quando chega numa comunidade tradicional, pode trazer alguns vícios e comportamentos idealizados a partir de uma determinada visão de civilização. Por enquanto, o que estamos vendo nas pesquisas é a destruição das identidades, principalmente nas comunidades mais urbanas, porque a escola já chega com um pacote pronto, professores formados dentro de uma lógica conteudista. Não conhecem nem querem saber das tradições locais”.
No ensino, o curso de pós-graduação em dança que se desenvolve este ano na Ufes, algo raro no Estado, os seis professores passaram pelo Andora e seguem em suas carreiras lecionando ou fazendo doutorado. Ao longo dos anos, já foram formados oficialmente cerca de 820 nos cursos de pós-graduação.
Aliás, o objetivo inicial de apoiar a formação de professores capacitados para ensinar as danças populares e tradicionais nas escolas cresceu em proporções não imaginadas inicialmente. Exemplo disso é a mostra que o Andora promove anualmente no Teatro Universitário, que costuma ficar abarrotado de gente: estudantes, professores e família.
“Normalmente as diretoras das escolas vêm”, aponta o professor, como sinal de prestígio do projeto. No ano passado foram 11 colégios envolvidos, alguns com até cinco grupos de alunos dançando. Este ano o evento acontece em novembro, no mesmo local. Estes grupos escolares de dança foram formados a partir de estudantes da Ufes que fizeram ou fazem parte da companhia de dança Andora durante sua formação acadêmica.
Atualmente, fazem parte do grupo de bailarinos pouco mais de 30 pessoas, incluindo estrangeiros residentes no Brasil. O número chega perto dos 40, incluindo pessoas que estão estudando fora do Estado, mas que participam de apresentações. No início do projeto, os dançarinos eram estudantes de Educação Física, mas com o tempo foram sendo incorporadas pessoas de outras carreiras como História, Filosofia, Artes, Psicologia e até Gemologia (estudo de pedras preciosas). Um bom dançarino, como diamante, pode ser lapidado.
Mas Antônio Carlos acredita que a dança é para todas e todos. “A gente consegue fazer com que qualquer pessoa dance. Dança não é um privilégio”, diz. Conta que Andora virou um método, sistematizado, que pretende publicar em livro até o final do ano, marcando a data de dez anos de existência do grupo. “Ninguém nasce dançando. A gente consegue fazer com que as pessoas dancem em pouco tempo, sem ser superficial, mas permitir que as pessoas dancem. Tem um método que permite que no primeiro dia que você chegar no grupo, você dança. Ninguém vai te colocar na barra para fazer exercício, você vai chegar e dançar. Com um mês no grupo, você tem coragem e segurança para subir no palco e dançar”.
O Cia Andora ainda visita as escolas levando um combo de oficina de dança e apresentação. Antônio Carlos aponta o quadro negro com o calendário repleto de compromissos. “Definimos que só visitamos duas escolas por mês, por conta da nossa capacidade. Mas este ano já visitamos 25 colégios. Passamos muito”.
Foto: Márcio Martins
Dentro das pesquisas do grupo, encontraram manifestações como a festa do Boi de Goiabeiras, que há vários anos deixou de ser celebrada neste bairro, onde está localizada a Ufes. O Andora reconstruiu a apresentação a partir de uma gravação em disco e relatos de moradores. “Não vamos refazer o boi deles, vamos reconstruir e levar para as escolas, principalmente as do bairro. Para saberem que tem um boi no bairro e tem que cuidar dele. Não vai ser a universidade que vai cuidar”. O Esquinado, outra dança que deixou de ser realizada no Espírito Santo, também está na mira dos estudos e práticas da companhia.
“A maioria dessas manifestações não era registrada, era tudo oral. E há o esquecimento biológico e o social. O biológico é quando a pessoa perde a memória mesmo, não sabe mais falar daquilo, morre. O social se dá quando a pessoa muda de vida, de estilo de vida, de religião, abandonando a prática.
A falta de materiais e referências bibliográficas sobre as danças e festas populares também é uma preocupação constante do grupo, sendo que na Toca do Goiamun é possível encontrar um acervo próprio de publicações a serem consultadas e discos que podem ser disponibilizados de forma virtual.
Uma pequena parte desse acervo, assim como recortes de jornais em que o grupo aparece, figurinos, reconhecimentos entregues nos festivais em que participa e fotos das apresentações e informações sobre os principais ritmos apresentados pelo grupo em suas exibições fazem parte da exposição Cia de Dança Andora 10 Anos, que está em exposição na Biblioteca Central da Ufes até 24 de outubro, com visitações gratuitas. A curadoria é de Juliana Lima e Rebeca Ribeiro, integrantes do grupo.
Foto: Juliana Lima
Juliana, responsável pelos registros fotográficos da exposição junto com Márcio Martins, é um exemplo do impacto que o grupo pode ter na formação. Estudante de Artes Visuais e dançarina desde os 13 anos com foco em Jazz e Dança Contemporânea, ela encontrou o grupo quando veio de São Paulo para estudar na Ufes. Interessada na questão do corpo e corporalidade, encontrou no grupo um contato com a cultura popular. “Foi algo que me encantou demais. A gente conhece mais nosso Brasil, acaba se conhecendo também, se encontrando. Pra mim foi como se me reencontrasse. E vindo de São Paulo para o Espírito Santo, foi a melhor forma de conhecer o Estado, conhecendo as danças populares daqui”.
Ela, como Antônio Carlos, destaca a importâncias da participação nos festivais nacionais e internacionais como um diferencial dos integrantes do Andora, pois permite uma vivência, aprendizado e intercâmbio muito enriquecedores.
No entendimento do professor, dança e a cultura popular não são apenas elementos identitários ou de entretenimento. Antônio Carlos cita como referência teórica de pesquisa do grupo o italiano Antonio Gramisci, que trabalha a questão da formação cultural como parte do processo de disputa de hegemonia política e social.
“Para mim isso é muito claro e a questão do golpe deixo isso evidente. Tivemos crescimento econômico, aumento do acesso ao consumo, mas não tivemos formação cultural. Essa falta de formação cultural permitiu que o golpe acontecesse com facilidade, elas se sentiram ameaças em seu consumo”, aponta. “A gente acredita que a formação cultural, principalmente ligada à identidade, é que vai fortalecer grupos para entender, resistir ou transformar as coisas”.
AGENDA CULTURAL
Exposição Cia de Dança Andora 10 Anos
Onde: Hall da Biblioteca Central da Ufes – Avenida Fernando Ferrari, 514, Campus de Goiabeiras, Vitória/ES
Quando: até 24 de outubro. Visitações gratuitas de segunda a sexta-feira de 7h às 21h e aos sábados de 7h às 13h.