“Sophia se dá a uma poesia que se solta em sua música da natureza”
A poeta Sophia de Mello Breyner Andresen tem uma relação estreita com a poesia de João Cabral de Melo Neto, e como uma escritora de Portugal, tem influências que vão do cânon maior, Camões, e o bastião português mais recente, da poesia moderna, Fernando Pessoa, ainda temos o breve Cesário Verde, e Jorge de Sena.
No Brasil, ainda podemos citar diálogos com Manuel Bandeira, Jorge de Lima, a que citei no primeiro texto sobre Sophia, esta sua relação estética que se irmana com Cecília Meireles, e temos também Murilo Mendes.
Do mundo helênico e latino antigo, temos também uma presença constante deste mundo antigo na poesia de Sophia, que nos traz Homero e Horácio, e a isto, falando do outro extremo, a contemporaneidade de Sophia, aí podemos citar os temas mais politizados, com uma voz poética libertária e anticolonialista, com um tipo de trajeto diverso e nômade, em que a poeta pode entrar numa temporalidade que é fugaz e também universalista, de um tipo de comunhão com o mundo.
Um projeto poético sólido, íntegro, compõe todo o trabalho de obra realizado pela poeta Sophia em vida, projeto realizado e legado histórico, com uma largueza temática, uma diversidade imagética, e leitmotivs como a presença ou onipresença do mar em toda a sua poesia. E também temos a presença da cidade, como num tipo de contraponto eventual a esta sua obsessão marítima.
No diálogo com João Cabral, há algo de contraste também, pois da frieza e da dureza calculada da poesia cabralina, temos uma poesia da portuguesa Sophia mais afeita aos atavios estéticos e ondulantes, de uma musicalidade mais fluida que tem parentesco brasileiro conhecido com Cecília Meireles.
De uma rigidez clássica de um parnaso que poderia virar pastiche, a escrita que alucina não nos deixa na ilusão de um mundo controlado, pois a poesia mais musical tem um certo clima espiritual que não se petrifica num modelo racional, seja este em sua aparência, como no ritmo de relógio suíço de uma poesia cabralina, por exemplo.
Então, Sophia se dá a uma poesia que se solta em sua música da natureza, em sua integração e fusão existencial ao mundo natural originário, é um canto, também um som.
POEMAS :
DE NO TEMPO DIVIDIDO:
VIII: O chamamento feito pela poeta é um convite de abraço, ou ainda, de abrir os braços, seu sentido maior: “Não te chamo para te conhecer/Eu quero abrir os braços e sentir-te/Como a vela de um barco sente o vento” (…) “Peço-te que venhas e me dês/Um pouco de ti mesmo onde eu habite”. Como estando num mar diante do vento, Sophia quer o frescor do encontro.
IX: Sophia aqui se estranha com a sua liberdade, e se coloca num tipo de reflexão: “Como é estranha a minha liberdade/As coisas deixam-me passar” (…) “Como é estranho viver sem alimento/Sem que nada em nós precise ou gaste/Como é estranho não saber”. De seu estranhamento ela chega à sua raiz, o seu não saber que funda esta sua reflexão.
SEM TÍTULO: A poeta Sophia aqui lamenta ter perdido a liberdade originária fornecida pelos deuses, que ela esperou, mas se quebrou, no que temos: “A liberdade que dos deuses eu esperava/Quebrou-se. As rosas que eu colhia,/Transparentes no tempo luminoso,/Morreram com o tempo que as abria.”. A sua colheita luminosa, portanto, se foi e morreu com este tempo que a abria.
POEMA DE AMOR DE ANTÓNIO E DE CLEÓPATRA: O poema evoca em seu título o poder político, e este domina o mundo, no que temos:”Pelas tuas mãos medi o mundo/E na balança pura dos teus ombros/Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua.”. Este poema político que, na verdade, é de amor, esta ideia de poder aqui se funde neste casal e esta vista privilegiada que se teve deste encontro.
SONETO DE EURYDICE: A poeta busca aqui a sua imagem, o seu próprio rosto, como em uma jornada de identificação: “Eurydice perdida que no cheiro/E nas vozes do mar procura Orpheu:” (…) “Assim bebi manhãs de nevoeiro/E deixei de estar viva e de ser eu/Em procura de um rosto que era o meu/O meu rosto secreto e verdadeiro.”. Aqui a poeta segue em sua busca que se dá como perdida: “Porém nem nas marés nem na miragem/Eu te encontrei.” (…) “E devagar tornei-me transparente/Como morta nascida à tu imagem/E no mundo perdida esterilmente.”. Esta busca de si e de um outro são duas frentes simultâneas de completude, estar pleno em si e se encontrar em uma felicidade com o outro, aqui neste poema nos aparece como uma jornada perdida, Sophia falha neste poema, falha em sua aventura.
NO TEMPO DIVIDIDO: A poeta clama em sua distância dos deuses, estes que um dia conheceu, e aqui ela se afasta, e sofre: “E agora ó Deuses que vos direi de mim?/Tardes inertes morrem no jardim./Esqueci-me de vós e sem memória/Caminho nos caminhos onde o tempo/Como um monstro a si próprio se devora.”. Seu conflito existencial aqui tem seu ponto nevrálgico com o tempo, este se esvai, ou ainda, aqui neste poema é como um monstro que se esgota em si mesmo.
PRECE: A ideia de pureza guia este poema: “Que nenhuma estrela queime o teu perfil/Que nenhum deus se lembre do teu nome/Que nem o vento passe onde tu passas.” (…) “Para ti criarei um dia puro/Livre como o vento e repetido/Como o florir das ondas ordenadas.”. O ideal da poeta é criar a este seu interlocutor um mundo puro e livre, em que até as flores estão em ordem, como numa harmonia plena.
DE MAR NOVO:
SEM TÍTULO: A justiça aqui se perde em seu desvio, a poeta lamenta: “Senhor se da tua pura justiça/Nascem os monstros que em minha roda eu vejo/É porque alguém te venceu ou desviou/Em não sei que penumbra os teus caminhos”. A poeta aqui vê uma divisão, como se esta justiça tivesse se esquecido de si mesma: “Muito tempo antes de eu ter vindo/Já se tinha a tua obra dividido” (…) “E em vão eu busco a tua face antiga” (…) “Por muito que eu te chame e te persiga.”. E a poeta busca esta justiça em vão, esta se perdeu ou não se sabe achar.
ENCRUZILHADA: As parcas aqui aparecem em versão fúnebre, no que temos: “Onde é que as Parcas Fúnebres estão?/_ Eu vi-as na terceira encruzilhada/Com um pássaro de morte em cada mão.”. E a imagem de morte se confirma, a coda é fatalista, com uma imagem poética de pássaros mortos.
MARINHEIRO SEM MAR: O poema se estende no drama do marinheiro sem mar, que se perdeu na cidade, e todo este poema usa das imagens marítimas para contrastá-las e as fazerem ir de encontro aos caminhos obscuros e frios de uma cidade concretada, no que temos: “Longe o marinheiro tem/Uma serena praia de mãos puras/Mas perdido caminha nas obscuras/Ruas da cidade sem piedade” (…) “E ele vai baloiçando como um mastro/Aos seus ombros apoiam-se as esquinas”. A riqueza das imagens produz este contraste de um fundo temático que entrechoca estes contrários, a realidade marinha e a cidade que a desfaz, no que vem: “Nas confusas redes de seu pensamento/Prendem-se obscuras medusas/Morta cai a noite com o vento”. O marinheiro agora é um ente errático, mais perdido do que flanando, ou seja, um errante, sim, e longe de ser um flâneur, seu drama existencial é ter perdido o mar e sua visão de horizonte, no que continua a poeta Sophia: “E sobe por escadas escondidas/E vira por ruas sem nome/Pela própria escuridão conduzido/Com pupilas transparentes e de vidro” (…) “Vai nos contínuos corredores/Onde os polvos da sombra o estrangulam/E as luzes como peixes voadores/O alucinam”. Seu estado mental se deteriora, ele é presa de uma alucinação, pois tudo secou e se apagou, no que vem: “Porque ele tem um navio mas sem mastros/Porque o mar secou/Porque o destino apagou/O seu nome dos astros” (…) “E é em vão que ele se ergue entre os sinais/Buscando a luz da madrugada pura/Chamando pelo vento que há no cais”. O marinheiro busca em vão retomar esta sua realidade marinha, e Sophia segue em seus versos: “Nenhum mar lavará o nojo do seu rosto/As imagens são eternas e precisas/Em vão chamará pelo vento” (…) “Ele morrerá sem mar e sem navios/Sem rumo distante e sem mastros esguios/Morrerá entre paredes cinzentas/Pedaços de braços e restos de cabeças/Boiarão na penumbra das madrugadas lentas.”. A poeta Sophia vaticina a morte fria e vazia deste marinheiro sem mar, no que segue: “E ao Norte e ao Sul/E ao Leste e ao Poente/Os quatro cavalos do vento/Sacodem as suas crinas” (…) “E o espírito do mar pergunta :/ Que é feito daquele/Para quem eu guardava um reino puro/De espaço e de vazio/De ondas brancas e fundas/E de verde frio?”. O mar pergunta do marinheiro, pois não mais o vê, e este pobre espírito perdeu a sua eternidade, seu mar, ele é um errante pelas ruas, num tipo de vazio existencial : “Ele não dormirá na areia lisa/Entre medusas, conchas e corais/Ele dormirá na podridão/E ao Norte e ao Sul/E ao Leste e ao Poente/Os quatro cavalos do vento/Exactos e transparentes/O esquecerão” (…) “Porque ele se perdeu do que era eterno/E separou o seu corpo da unidade/E se entregou ao tempo dividido/Das ruas sem piedade.”.
SEM TÍTULO: A poesia aqui neste poema da poeta Sophia, por dizer assim repetidamente este jogo de palavras, a poeta aqui tem o destino de uma luz que se perde na penumbra, a luz original das letras, muitas vezes, vem de um gozo de uma existência que pode ser pálida no mundo duro e real das coisas concretas, no que temos: “A bela e pura palavra Poesia/Tanto pelos caminhos se arrastou/Que alta noite a encontrei perdida/Num bordel onde um morto a assassinou.”.
AS TRÊS PARCAS: As parcas do destino tecem maus caminhos, o fado que é mais fatalista que livre, e esta imagem de angústia vem desta concepção micênica, que inundou o mundo helenista logo em seguida neste espírito do mito, sobretudo no surgimento do fado teatral com o advento das tragédias, no que temos: “As três Parcas que tecem os errados/Caminhos onde a rir atraiçoamos/O puro tempo onde jamais chegamos/As três Parcas conhecem os maus fados.”. O cego tateia, e as parcas tecem, e segue o poema: “Por nós elas esperam nos trocados/Caminhos onde cegos nos trocamos/Por alguém que não somos nem amamos”. E todas as promessas se esboroam nesta visão fatalista da qual o que se anelou se perde neste tempo impassível comandado pelo fado de parcas que enganam: “E nunca mais o doce vento aéreo/Nos levará ao mundo desejado” (…) “Será o nosso rosto conquistado/Nem nos darão os deuses o império/Que à nossa espera tinham inventado.”.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com
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