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Associação de Folclore denuncia ‘falta de zelo com a cultura e a ancestralidade’

Grupos de Ticumbi são tema de exposição fotográfica para a qual não deram autorização

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A Associação de Folclore de Conceição da Barra denunciou, por meio de nota, “a falta de zelo com a cultura e a ancestralidade” por parte dos gestores públicos e “dos ditos produtores culturais”. A manifestação foi motivada pela realização da exposição Ticumbi, Fé de Festa, inaugurada no último dia 17, no Museu Capixaba do Negro (Mucane), em Vitória. A exposição envolve os grupos de Ticumbi de Conceição da Barra, no norte do Espírito Santo, mas, para sua realização, não foi solicitada autorização dos mesmos, que só souberam da iniciativa quando já estava sendo divulgada.

Os grupos envolvidos são Ticumbi de São Benedito do Bongado, Ticumbi de São Benedito de Itaúnas e Ticumbi de São Benedito de Conceição da Barra. O presidente da associação, Lucas Conchavo dos Santos, afirma que os grupos folclóricos se sentiram desrespeitados. “Não é a primeira vez que isso acontece, de usarem a nossa cultura para se promover. É um erro das gestões públicas, que aceitam nos editais projetos culturais sem autorização das pessoas envolvidas neles. Como não foi o Ticumbi que propôs, foi alguém de fora, nossa autorização deveria ter sido pedida para apresentação do projeto”, destaca.

O guia do Ticumbi de São Benedito de Itaúnas, Rafael Brandão, de 28 anos, integra o grupo desde os 11. Ele afirma ter crescido vendo casos semelhantes acontecerem. “Nós aqui somos receptivos com quem tem boa intenção, com quem vem para somar, mas nesse caso não houve isso. A cultura popular, o folclore de Conceição da Barra, a gente tem conhecimento sobre os nossos direitos e não vamos nos calar. Nossa imagem tem valor, e não é financeiro, é sentimental”, desabafa.

Na nota, a associação relata que “projetos aprovados sem anuência dos grupos têm gerado inúmeros produtos culturais que contam a nossa história de forma deturpada e usam a nossa imagem sem autorização prévia”. O texto acrescenta que os grupos só tomam conhecimento dos projetos quando já estão publicados, “gerando grande desconforto”. A entidade aponta, ainda, o que considera “problemas maiores no âmbito das políticas públicas na área da cultura”.

“A gestão pública de cultura tem nos obrigado a nos adaptarmos à uma linguagem que na maioria das vezes não dialoga com nosso modo de vida e de nossas reais necessidades. Há ensaios tímidos de se considerar, por exemplo, a oralidade como uma prova das nossas práticas culturais”, diz. Também é criticado o fato de as políticas culturais se concentrarem em editais. “Tal política impõe que os grupos disputem entre si os prêmios, gerando sempre insatisfação entre aqueles não contemplados e, muitas vezes, prioriza não os grupos mais tradicionais, mas sim os que têm maior estrutura organizacional”.

A política de editais, destaca a associação, gera “insegurança e incertezas”, uma vez que as festas têm calendário fixo e boa parte dos recursos para a realização vem dos editais. A data de publicação dos mesmos também é apontada como um problema. “Nos últimos anos, os editais têm sido abertos nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, coincidindo com nossos festejos, nos obrigando a nos dividir entre nossas obrigações de fé e a questões burocráticas”, relata.

Para a entidade, essas práticas são “coloniais”, além de desvalorizar e humilhar os grupos. “Resistimos a isso por meio de nossas festas, nossos saberes e fazeres tão diversos que se reinventam por séculos em nosso território. Não há sentido algum que nossas práticas culturais tradicionais tenham que se provar para serem aprovadas em editais, como se tudo o que já fazemos tão bem e há tanto tempo, começasse novamente a cada ano”, sentencia.

A Associação de Folclore de Conceição da Barra defende “políticas públicas perenes e consistentes que nos reconheçam definitivamente”. “Acreditamos que este é um problema de todos os grupos de cultura popular do Espírito Santo e convidamos outras associações geridas por membros da cultura popular a se manifestarem para nos organizarmos e gerar uma discussão que nos inclua de fato nas tomadas de decisões, não só para recebermos passivamente o dinheiro, mas em todas as suas fases, desde o planejamento, passando pela execução e também na etapa de prestação de contas. Isto sim, é Política Democrática Participativa”, enfatiza.

“Precisamos evidenciar quem é parceiro e quem é oportunista. Pesquisadores, artistas visuais, fotógrafos, cineastas, escritores que nos respeitam continuarão a ser bem recebidos. Contudo, já informamos que a partir do nosso próximo ciclo de festas, que se inicia no dia 30 de dezembro, todas as pessoas que desejarem realizar seus projetos, mesmo que seja ‘apenas’ fotografar com equipamento profissional, devem se reportar à Associação de Folclore de Conceição da Barra, que representa seus 23 grupos associados, para preencher um cadastro”, finaliza a nota. O cadastro poderá ser feito online, por meio de link que será disponibilizado no Instagram da Associação.

Donos da História

A insatisfação com a exposição já havia sido manifestada por meio do artigo Donos da História, de Jonas Balbino, rei de Congo do Ticumbi de São Benedito de Conceição da Barra. Ele narra que o grupo soube da exposição há um ano, quando a proponente e curadora, Vania Caus, informou que havia aprovado um projeto para fazer uma homenagem ao grupo e ofereceu transporte e lanche para que estivessem presentes.

No entanto, o grupo recusou, o que fez com que a proposta fosse modificada, sendo o convite ampliado para o Ticumbi de São Benedito do Bongado e o Ticumbi de São Benedito de Itaúnas, “o que não muda o fato de que fomos usados pela mesma na fase de aprovação”, aponta Jonas. “Não aceitamos e nos sentimos ofendidos com a proposta. Estamos cansados desse tipo de homenagem que beneficia os artistas brancos da Capital, que usam a nossa imagem de forma deturpada e vendem uma cultura da qual nada conhecem”, acrescenta.

O autor também destaca a surpresa com o fato de a exposição acontecer no Mucane, “espaço dedicado à valorização da cultura negra, e não para servir de palco a homenagens que em nada fortalecem a luta histórica por nosso território e a manutenção da nossa cultura, herdada de nossos antepassados”. É destaca também surpresa com o fato de um tema “que envolve nossa ancestralidade esteja sendo tratado por uma curadora cujo histórico de racismo é conhecido no meio cultural, fato ocorrido na última Conferência Estadual de Cultura, quando chamou as mulheres quilombolas do sul do Estado de ‘urubus em cima de carniça”.

O texto encerra fazendo críticas às formas como as políticas de cultura são conduzidas: “os editais de governo têm aprovado amiúde projetos sem conhecimento dos grupos e sem prévia autorização dos mesmos. São inúmeros os fotógrafos, cineastas e pesquisadores que chegam no território com projetos aprovados apontando suas câmeras e gravadores para nós, e o resultado disso são inúmeros trabalhos publicados, expostos e exibidos contando nossa história de forma deturpada, o que prejudica sobremaneira a nossa luta”.

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