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Augusto Frederico Schmidt e a morte

A poesia de Augusto Frederico Schmidt se dá com o tema da morte de um modo não linear, não tem uma objetividade que se espera, por exemplo, de uma postura intelectual sobre o tema, pois, por estamos falando de uma abordagem poética sobre a morte, temos que a lírica schmidtiana não produz um todo ordenado sobre o mistério da morte e suas implicações metafísicas e profundamente filosóficas.
 
Não temos a ordem metafísica de uma filosofia primeira, nada disso, temos sim um emaranhado em que o fluxo poético, de acordo com a própria evolução da obra deste poeta, não nos apresenta uma linha reta, mas sim um ir e vir do tema com suas vestes de metamorfose, a morte primeiro na busca de sua solução e depois na desistência decorrente de sua radicalidade.
 
Portanto, a poesia schmidtiana acolhe a morte como mistério que se busca entender e que também, e concomitantemente, se torna o limite do imponderável, do incompreensível, da fuga para uma outra paragem que se ignora completamente, em posições conflitantes e contraditórias como efeito da própria gravidade do fenômeno e da questão da morte.
 
A ideia da inutilidade da vida física e de sua perecibilidade invade a poesia de Schmidt e nos leva a uma reflexão vestida de fruição estética que nos dá então um sentido de libertação através da morte, liberdade da morte deste nosso mundo de sofrimento e de ignorância sobre o que é a vida, pois a condição física nos impõe a dúvida metafísica, e a morte como libertação pode ser a única resposta que o universo nos oferece.
 
No entanto, Schmidt também não nos dá uma visão benéfica do mundo dos mortos, mas sim um espaço de fuga da vida finita de um mundo físico repleto de dor. Schmidt, nos seus poemas, explora o tema da morte por vários ângulos possíveis, dando pistas, respostas relativas, numa tentativa de abrandar a angústia da condição mortal do homem.
 
E no fim do trajeto poético de Schmidt vemos então a sua resignação diante do enigma, a sua lírica já se conformando com a própria ignorância, e isto numa obra poética que tinha, em parte, um caráter religioso, mas que não foi, mesmo assim, numa direção doutrinária, mas sim reflexiva, e isto numa experiência estética que foi a sua poesia.
 
POEMAS
 
CANTO DA NOITE (1934)
 
MORTE DO HOMEM: O poema descreve o desenlace de uma alma do corpo, e a imagem de todo o poema é este fenômeno desconhecido que a poesia de Schmidt tenta decifrar e nos mostrar, no que temos : “Meu espírito seguirá finalmente sem lembranças./Durante um instante porém olhará meu corpo imóvel.” (…) “Meu corpo não será mais meu/E o teu corpo não será mais meu/Sairás esplêndida e o teu olhar será velado/Sairás magnífica e o teu corpo moreno brilhará no calor da/noite./Meu espírito errará um instante.” (…) “A luz pálida do quarto e os trens fugindo!/Meu espírito não levará lembranças/Mãos estranhas levarão meu corpo!”. O poema nos dá esta descrição rica de que o espírito errante vê o corpo e está presente até o momento em que levam este corpo embora.
 
DESPEDIDA I: O poema ganha este sentido da visão como experiência suprema, no que o poeta tudo vê, e nos mostra então, no que segue : “Viu pássaros riscando o céu nevoento./Viu veleiros no mar,/Viu ondas altas, viu calmarias,/Viu noites sem luz, cheias de susto./Ouviu vozes gritando, vozes rudes/Ouviu vozes cantando toadas tristes.” (…) “Sentiu sobre o seu corpo um outro corpo./Sobre os seus lábios outros lábios./Desceram sobre os seus ombros folhas secas./Um grande silêncio chegou da rua abandonada./Depois levaram seu velho corpo inútil para a terra.”. E novamente o poeta está presente até o momento em que levam o seu corpo, já inútil, para a terra.
 
MOMENTO: O poema descreve o momento como a fonte do desejo, e eis que o poeta lista tudo o que lhe move, no que temos : “Desejo de não ser nem herói e nem poeta/Desejo de não ser senão feliz e calmo.” (…) “Desejo dos filhos crescendo vivos e surpreendentes/Desejo de vestidos de linho azul da esposa amada.” (…) “Desejo de integração no cotidiano./Desejo de passar em silêncio, sem brilho/E desaparecer em Deus – com pouco sofrimento/E com a ternura dos que a vida não maltratou.”. E a vida cotidiana aparece aqui como seu intento, passando o poeta discreto, em silêncio, com uma ternura que volta ao seio de Deus, sem sofrimento.
 
POR QUE CHORAR?: O poema nos dá a questão do choro, e invoca que não há razão para o choro, e o poema nos dá um cabedal de imagens que tentam justificar a felicidade da vida, e de que não há razões para chorar, no que temos : “Por que chorar se o céu está róseo/Se as flores estão nas trepadeiras balançando, ao sopro leve/do vento?/Por que chorar se há felicidade nos caminhos” (…) “Por que chorar se há jasmins nos caminhos/E moças de branco namoradas/Por que chorar?/Por que chorar – meu Deus, se estou feliz e pobre,/Feliz como os pobres desconhecidos dos hospitais/Feliz como os cegos para quem a luz é mais bela do que/a luz.” (…) “Por que chorar?”. A pergunta como coda termina em aberto, e o poeta fica nesta dúvida entre sua felicidade e uma dor que ele pergunta ou tenta fazer com que não exista, ao menos nesta intenção do poema aqui descrito.
 
ESTRELA SOLITÁRIA (1940)
 
DESTINO DA BELEZA: O poema se dá com o perecível da vida física, e nos dá a entender que a beleza não morre, que ela reside na eternidade, no que temos : “Quando o tempo desfaz as formas perecíveis,/Para onde vai, qual o destino da Beleza,/Que é a expressão da própria eternidade?” (…) “A Beleza não morre./Não importa que o seu caminho/Seja visitado pela destruição,” (…) “Deus recolhe o que venceu as substâncias frágeis/E realizou o milagre do Espírito Impassível/No movimento e na matéria./Deus recolhe a Beleza como o corpo absorve a sua sombra/Na hora em que a luz realiza o seu destino de unidade e pureza.”. A experiência da beleza, e por fim, da poesia, se dá com algo que não reside no mundo mortal. A origem da estética está num fundo eterno que o poeta intui neste poema.
 
AZUL!: O poema descreve o pássaro e o azul, no que segue : “Vejo um pássaro num voo tranquilo pelo céu./No ar matinal e azul há um perfume de amor novo,/Uma palpitação de cachoeiras, de águas em flor, de águas/caídas./Para o olhar, a contemplação das paisagens inéditas./Cheias de grandes verdes e de árvores com frutos se balançando,/E com tudo isto um renascimento de esperanças perdidas./Alegria próxima da vida!/Alegria das sestas protegidas pelas árvores maternas./Alegria das tranças do Amor,/Como chegaste ao meu ermo?” (…) “Alegria, quem te indicou meu abrigo?/Foi o pássaro que eu vi passar nos caminhos do Céu,/Ou o olhar de minha Mãe que brilhou no seio escuro da Morte?”. A alegria e o caminho do pássaro, seu voo que indica ao poeta o céu que ele indaga como um abrigo, e que vê através de sua mãe um enigma que mora no seio escuro da morte.
 
POEMAS
 
CANTO DA NOITE (1934)
 
MORTE DO HOMEM
 
Meu espírito seguirá finalmente sem lembranças.
 
Durante um instante porém olhará meu corpo imóvel.
 
Serei diante dos outros o estrangeiro e me desconhecerão
 
Meu corpo não me pertencerá mais!
 
Me olharão todos com olhos novos, aclarados
 
E as imaginações estarão desvairadas.
 
 
O automóvel percorrerá ruas molhadas
 
Um ruído de pandeiros se distanciando
 
Um cão parado no meio da rua.
 
 
Meu corpo não será mais meu
 
E o teu corpo não será mais meu
 
Sairás esplêndida e o teu olhar será velado
 
Sairás magnífica e o teu corpo moreno brilhará no calor da
 
noite.
 
 
Meu espírito errará um instante.
 
Minha mãe, meu pai, os telheiros
 
A chuva caindo nos campos, nos canaviais
 
A chuva caindo nas noites frias nas cidades
 
A chuva caindo sobre meu avô no túmulo, sobre minha
 
mãe no túmulo, sobre meu pai no
 
túmulo, sobre mim no túmulo!
 
 
A luz pálida do quarto e os trens fugindo!
 
Meu espírito não levará lembranças
 
Mãos estranhas levarão meu corpo!
 
 
DESPEDIDA I
 
Viu pássaros riscando o céu nevoento.
 
Viu veleiros no mar,
 
Viu ondas altas, viu calmarias,
 
Viu noites sem luz, cheias de susto.
 
Ouviu vozes gritando, vozes rudes
 
Ouviu vozes cantando toadas tristes.
 
 
O vento da tarde entrou pelas janelas
 
E trouxe um cheiro de mar bravio.
 
 
Viu, de relance, portas tristes, sujas.
 
Viu velhas casas, velhas pontes negras.
 
Ah! viu também pequenas ruas.
 
Chuvas sem fim caindo, viu!
 
Viu fisionomias desaparecidas
 
Viu um berço de criança na penumbra de um quarto.
 
Sentiu sobre o seu corpo um outro corpo.
 
Sobre os seus lábios outros lábios.
 
Desceram sobre os seus ombros folhas secas.
 
Um grande silêncio chegou da rua abandonada.
 
Depois levaram seu velho corpo inútil para a terra.
 
 
MOMENTO
 
Desejo de não ser nem herói e nem poeta
 
Desejo de não ser senão feliz e calmo.
 
Desejo das volúpias castas e sem sombra
 
Dos fins de jantar nas casas burguesas.
 
 
Desejo manso das moringas de água fresca
 
Das flores eternas nos vasos verdes.
 
Desejo dos filhos crescendo vivos e surpreendentes
 
Desejo de vestidos de linho azul da esposa amada.
 
 
Oh! não as tentaculares investidas para o alto
 
E o tédio das cidades sacrificadas.
 
Desejo de integração no cotidiano.
 
Desejo de passar em silêncio, sem brilho
 
E desaparecer em Deus – com pouco sofrimento
 
E com a ternura dos que a vida não maltratou.
 
 
POR QUE CHORAR?
 
Por que chorar se o céu está róseo
 
Se as flores estão nas trepadeiras balançando, ao sopro leve
 
do vento?
 
 
Por que chorar se há felicidade nos caminhos
 
Se há sinos batendo nas aldeias de Portugal?
 
Por que chorar se os meninos estão nos circos
 
Se a poesia está rolando nas pedras da serra do nunca mais?
 
Por que chorar se há clarinetes entardecendo
 
Se há missas no fundo do Brasil?
 
Por que chorar se há virgens morrendo
 
Se há doentes sorrindo
 
Se há estrelas no céu de junho
 
Por que chorar?
 
Por que chorar se há jasmins nos caminhos
 
E moças de branco namoradas
 
Por que chorar?
 
Por que chorar – meu Deus, se estou feliz e pobre,
 
Feliz como os pobres desconhecidos dos hospitais
 
Feliz como os cegos para quem a luz é mais bela do que
 
a luz.
 
 
Feliz como os mendigos alimentados
 
Feliz como os desamados que tiveram um beijo
 
Feliz como as velhas dançarinas aplaudidas de repente
 
Feliz como um prisioneiro dormindo
 
Por que chorar?
 
 
ESTRELA SOLITÁRIA (1940)
 
DESTINO DA BELEZA
 
Quando o tempo desfaz as formas perecíveis,
 
Para onde vai, qual o destino da Beleza,
 
Que é a expressão da própria eternidade?
 
 
Na hora da libertação das formas,
 
Qual o destino da Beleza, que as formas puras realizaram?
 
 
Qual o destino do que é eterno,
 
Mas está configurado no efêmero,
 
No momento inexorável da purificação?
 
 
A Beleza não morre.
 
Não importa que o seu caminho
 
Seja visitado pela destruição, que é a própria lei
 
E pelas sombras.
 
 
A Beleza não morre.
 
Deus recolhe as flores que o tempo desfolha;
 
Deus recolhe a música das fisionomias que o tempo escurece
 
e silencia;
 
 
Deus recolhe o que venceu as substâncias frágeis
 
E realizou o milagre do Espírito Impassível
 
No movimento e na matéria.
 
Deus recolhe a Beleza como o corpo absorve a sua sombra
 
Na hora em que a luz realiza o seu destino de unidade e pureza.
 
 
AZUL!
 
Vejo um pássaro num voo tranquilo pelo céu.
 
No ar matinal e azul há um perfume de amor novo,
 
Uma palpitação de cachoeiras, de águas em flor, de águas
 
caídas.
 
 
Para o olhar, a contemplação das paisagens inéditas.
 
Cheias de grandes verdes e de árvores com frutos se balançando,
 
E com tudo isto um renascimento de esperanças perdidas.
 
 
Alegria próxima da vida!
 
Alegria das sestas protegidas pelas árvores maternas.
 
Alegria das tranças do Amor,
 
Como chegaste ao meu ermo?
 
Alegria dos trigais e das raparigas do povo,
 
Das raparigas de corpos substanciais como os vinhos agrestes,
 
Quem te derramou sobre o peito deserto e cheio das sombras
 
da memória?
 
 
Alegria dos sinos e dos ninhos,
 
Dos sons e dos pássaros,
 
Quem te trouxe para o velho coração úmido como os quartos
 
escuros da infância?
 
 
Alegria dos rebanhos na madrugada,
 
Dos mergulhos nas águas noturnas dos lagos,
 
Alegria do pão e das fontes,
 
Alegria das primeiras flores dos campos,
 
Quem te trouxe a mim como o leito fresco para o corpo
 
cansado do trabalhador,
 
Como as viandas para os famintos?
 
 
Alegria, quem te indicou meu abrigo?
 
Foi o pássaro que eu vi passar nos caminhos do Céu,
 
Ou o olhar de minha Mãe que brilhou no seio escuro da Morte?
 
 
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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