Documentário “Filhas de Lavadeiras”, de Edileuza Penha de Souza, foi o melhor curta-metragem do Festival É Tudo Verdade
A exibição do filme Filhas de Lavadeiras em Vitória foi possivelmente um dos últimos eventos culturais presenciais neste ano, na noite anterior ao início do decreto de isolamento social em decorrência da pandemia do coronavírus. De lá pra cá, as telonas dos cinemas tem dado lugar às telas de computador, mas os festivais de filme tem acontecido a todo vapor de modo online. E Filhas de Lavadeira volta às páginas de jornal, com uma ótima notícia: o filme da capixaba Edileuza Penha de Souza foi vencedor de melhor curta-metragem no Festival É Tudo Verdade, um dos mais importantes do gênero documentário na América Latina.
A obra conta com depoimento de várias mulheres negras e suas trajetórias de vida, que foram entrelaçadas pela luta de suas mães que trabalharam arduamente como lavadeiras para possibilitar o sustento e permitir que suas filhas lutassem por seus sonhos. Entre as entrevistas, personalidades conhecidas como a deputada carioca Benedita da Silva, a escritora Conceição Evaristo e a atriz Ruth de Souza, em uma de suas últimas entrevistas antes de falecer, assim como outras mulheres anônimas de distintas gerações, profissões e forma de levar a vida.
“Nossas histórias ainda precisam ser contadas e contadas por nós. O filme conta a história dessas mulheres que construíram o Brasil e com água e sabão têm lavado a dignidade de suas famílias. Esse é o lugar do filme, conta histórias positivas de amor, pois foi com muito amor que elas trabalharam para pode construir outro futuro para suas filhas”, aponta Edileuza.
Além da relevância das temáticas apresentadas, a premiação no É Tudo Verdade também tem grande significado não só para Edileuza, mas para toda uma luta que vem sendo travada por profissionais negros para ganhar espaço no cinema nacional, espaço em que a produção historicamente vem sendo realizada por grande maioria de produtores, diretores e profissionais negros, o que se intensifica ainda mais nos filmes de mais alto orçamento.
“Os levantamentos sobre os diretores de filmes que chegaram ao circuito comercial e foram financiados pela Ancine [Agência Nacional de Cinema] mostram um número baixíssimo de mulheres brancas, quase insignificante de homens negros, e zero de mulheres negras. Essa ausência não é casual e tem a ver com o racismo estrutural do Brasil e com o próprio apagamento da história”, diz Edileuza da Penha, lembrando da cineasta Adélia Sampaio, primeira mulher negra a produzir um longa-metragem no Brasil, que participou do movimento do Cinema Novo, mas é pouquíssimo conhecida e lembrada.
“As curadorias precisam estar mais atentas. Como diz Heitor Augusto, cineasta negro, é preciso curar nossos filmes, se não são curados, eles não são mostrados”, analisa a cineasta. Ela considera que não é por falta de produção que os filmes de cineastas negros não chegam a certos espaços, já que a produção tem sido crescente e pujante no país, assim como a organização dos realizadores em espaços como a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro, que em poucos anos já reúne centenas de trabalhadores e criadores da do setor.
Por isso, Edileuza celebra com alegria o reconhecimento pelo prêmio num festival de grande importância nacional e internacional. Mas não deixa de expressar sua preocupação. “Não tem absolutamente nada garantido para nós negros e negras. A polícia mata pessoas negras a todo instante, quando elas são ‘confundidas’. O prêmio é de uma importância imensa, mas não tenho absolutamente nada garantido”, lamenta.
A expectativa é que este reconhecimento ajude a fazer o filme circular e consiga também projetar o nome de Edileuza na área do cinema, já que seu reconhecimento principal é pelo trabalho acadêmico na área da educação e combate ao racismo.
No próximo dia 3 de novembro, ela é a convidada para dar a conferência de abertura do Seminário Nacional de Educação das Relações Étino-Raciais, realizado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Ufes, o Neab. O tema da palestra será “Territórios Educacionais e Lutas Antirracistas”. As inscrições para participar de todo o evento podem ser feitas online.
“Nossa luta é por território e garantia de educação. Nossa luta por educação é permanente, o filme Filhas de Lavadeiras está totalmente ligado a essa proposta do Neab de pensar novos territórios, a ancestralidade e a educação como forma de libertação”, explica a professora e pesquisadora.
Entre os trabalhos acadêmicos, ela vem trabalhando na construção de roteiros, inclusive de seu primeiro longa-metragem, além de desenvolver parcerias com outros profissionais pensando em projetos futuros. “A ideia agora é não parar”, avisa. “Não quero estar no É Tudo Verdade só em 2020. Quero chegar em 2050 e poder dizer que participo há 30 anos, como ouvi de vários no debate realizado pelo evento”.
Mas as preocupações seguem presentes, especialmente com os que vem de uma origem como a sua. “Sou uma mulher negra, filha de lavadeira, que gosta muito de cinema e acredita que o cinema é uma arma que nós negros sabemos usar, uma ferramenta para novos olhares, para permitir a nossas crianças e adolescentes sonhar que outro mundo é possível, mais fraterno e igualitário e sem racismo”, imagina a professora e diretora.
Infelizmente, o cenário de destruição das políticas para o audiovisual iniciadas no governo de Michel Temer vem sendo radicalmente aprofundada por Jair Bolsonaro e sua equipe, prejudicando todo setor, mas especialmente aqueles que vinham emergindo com força e agora encontram a escassez de recursos e condições de produção.
Mas Edileuza Penha bem sabe que a luta de seu povo vem de muito antes em forma de resistência prolongada. “Eu sei que mostrar a dor ainda é necessário. Mas precisamos também falar de amor, que é revolucionário. Quero contar histórias de amor”, expressa sobre a linha que vem construindo no documentarismo, para desencobrir as histórias ocultadas por esses mais de cinco séculos de colonialismo.