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Cassiano Ricardo e seu lado político

Cassiano Ricardo é conhecido por sua participação relevante nos principais movimentos literários do início do século XX, mas também como alguém que tomou a frente na política brasileira, sobretudo dos anos 1920 aos 1940, como um dos que, ao fim, defenderam e se beneficiaram do que viria a ser o Estado Novo varguista, que durou, sob o governo autoritário do presidente Getúlio Vargas, de 1937 a 1945.
 
Na sua biografia, o poeta Cassiano Ricardo teve contato tanto com a teoria positivista como com o parnasianismo, num primeiro momento. O poeta, no seu nacionalismo e ativismo político subsequente, colocou a imagem do poeta Olavo Bilac como um seu ideal de poeta soldado, engajado nas causas políticas e nacionais, este que chegou a compor marchas para o exército brasileiro. E o poeta Cassiano Ricardo, por sua vez, sobretudo a partir da década de 1930, será atuante literária e politicamente no sentido de um chamado aos intelectuais brasileiros para o engajamento destes nas causas nacionais, na atuação como pessoas públicas, e na busca de uma identidade nacional, isto é, de uma originalidade da cultura brasileira, sendo este ímpeto e busca de Cassiano Ricardo tema de sua literatura nas obras que surgem dele a partir dos anos 1930.
 
Ainda na década de 1920, por sua vez, Cassiano Ricardo abandona o parnasianismo de seus primeiros escritos e abraça o modernismo, e junto com figuras como Plínio Salgado e o poeta Menotti Del Picchia, dentre outros, participa do “Movimento Verde-amarelo”, que viria a ser uma das vertentes mais conservadoras do Modernismo brasileiro. Movimento este que vai se esmerar na luta contra a influência europeia e estrangeira e defender uma cultura brasileira completamente original, do que também poderia ser chamado de “brasilidade”, e para tal defendiam um governo capaz de preservar esta identidade nacional, sendo então tal governo ideal de cepa autoritária, daí o caráter conservador deste nacionalismo do qual Cassiano Ricardo é um dos seus expoentes.
 
Em contraponto ao movimento integralista (Ação Integralista Brasileira) e a herança que este recebe do fascismo italiano, com a liderança de Plínio Salgado, o poeta Cassiano Ricardo irá militar no movimento chamado Bandeira, o qual recusará qualquer influência política estrangeira, com a ideia de um estado forte (autoritário e conservador) e nacionalista, num movimento de crítica ao liberalismo e ao comunismo, ideologias estrangeiras, evocando no nome do movimento Bandeira o bandeirismo, a marcha dos bandeirantes, que seria a grande obra original do Brasil, consumando uma visão a favor de um novo governo centralizador.
 
E é na sua atuação política que, por conseguinte, já sendo um dos que defendem o nacionalismo do movimento Bandeira, que o poeta Cassiano Ricardo logo vai aderir ao Estado Novo de Getúlio Vargas, e então ele será tanto o poeta do Martim Cererê como também o ideólogo estadonovista, sendo o livro Martim Cererê, por sua vez, um dos frutos literários mais importantes deste nacionalismo do poeta Cassiano Ricardo, livro que é lançado em 1928 e junta o Brasil dos meninos, poetas e heróis, com ilustrações de Di Cavalcanti, em sua primeira edição. Livro este que parte da história do marinheiro branco Martim, narrando a origem do Brasil, Martim que busca ganhar o amor da índia Uiara, traz a noite (os escravos, na analogia) da África, e desta junção nascem os Bandeirantes, que viriam a ser os desbravadores e heróis do Brasil.
 
POEMAS :
 
O SANGUE DAS HORAS (1940)
 
O SANGUE DAS HORAS : O poema luta com a sensação de falta e de incompletude, o sangue das horas é a insone noite que traz as necessidades insaciáveis, e o poeta deixa estes versos : “Queixei-me de não ter pão/e a noite me disse não./Mostrei-lhe a varanda nua/e a Noite me trouxe a lua …” (…) “São verdes como a esperança/as horas em que sou triste :”. Um certo spleen, ou ainda, a tristeza de uma noite vazia, toma o coração do poeta, no que o poema segue : “procuro o que não existe.” (…) “Que dúbio alvor de camélia/anda lá fora a flutuar?/É a Noite que, de tão velha,/Tão velha,/criou cabelos de luar …/A insônia do meu relógio/durante a noite passada/crivou-me o corpo, já enfermo,/de punhaladas sonoras …/Meus olhos são duas feridas/por onde/escorre o sangue das horas.” (…) “Tomei café sem parar./Bebi treva em goles mudos …/Criei cabelos de luar.”. O poeta aqui já se funde ao cenário noturno, criando seus cabelos de luar, o que lhe resta de seu vazio escuro da noite.
 
UM DIA DEPOIS DO OUTRO (1947)
 
A IMAGEM OPOSTA : O poema retrata o espelho tanto como o reflexo da verdade como o repositório ideal de todos os segredos humanos, a intimidade do poeta aqui é refletida no espelho que ele descreve no poema, e também é este espelho o que o poeta oculta ao mundo, no que temos : “Espelho, sub-reptício espelho,/meu professor de disfarce./Quem poderá disfarçar-se/sem recorrer ao seu conselho?” (…) “Suspenso defronte à janela,/falador, não obstante mudo,/ele é o meu jornal tagarela/que em segredo me conta tudo./Graças ao seu préstimo avisto/tudo o que se passa lá fora./E vejo, sem jamais ser visto,/a vida que se vai embora …”. E segue o poema, como um conselheiro que diz tudo o que se passa no mundo, este que é aqui a rua, no que temos : “Espelho, só pra contemplar-se,/em sua superfície nua,/tudo o que se passa na rua …/Espelho, só que me disfarce./Professor de realismo? Nunca./Há um rosto, que ele não me mostra./Sozinho, sou uma pergunta,/em meu reflexo uma resposta.”. E é no espelho que o rosto do poeta se reflete, no que segue o poema : “O meu rosto é apenas a tampa/de um noturno labirinto./Pois em verdade nunca estampa/a grande verdade que eu sinto./O meu ar de fácil espanto/diante da verdade ou do erro,/o rir com que disfarço o pranto,/a dor com que acompanho enterro,/tudo isto aprendi num espelho,/secretamente, sem alarme./E como agora fantasiar-me/de novo, sem o seu conselho?/O olho de cristal, severo!/com que a minha face investigo./Digo-te tudo, só não digo/que me ensinaste a ser sincero.”. O conflito do poeta ganha este corpo de cristal do espelho, seu dilema ou imbricação existencial tem no poema sobre o espelho a imagem fiel de um drama e de uma história que se vê na sua conjunção de erro e verdade.
 
GEOMETRIA CIVIL : O poema aqui trata do dever civil e de uma certa vida em ordem ou com este fetiche da ordem acima de tudo, no que temos : “Eu tenho um corpo/feito de barro vil/mas cheio de deveres/e obediência civil./Sou um transeunte/em dia com o código/da ética pedestre.”. E aqui a ordem conjuga a palavra exatidão, no que segue : “Exato no meu fato/azul, sob medida;/exato na cesura/de um verso alexandrino;” (…) “Exato – se procuro/te beijar no escuro/não erro a tua boca/entre os pontos cardeais/de minha geografia/amorosa;”. E eis que a ordem ganha corpo e mestria, no que segue : “Sofro, também, de ordem./Da irrecorrível ordem/que aceitei por herança./Em vão as vespas/da revolução me mordem./Minha geometria/é uma coisa viva/feita de carne e osso.”. É o sofrimento da ordem, que o poeta tanto enaltece, no entanto, no que o poema segue em seu ímpeto :  “Ah, eu sofro de ordem,/mas em vão;/pois não ganhei, com isso,/nenhum laurel, comenda,/ou condecoração.” (…) “Pertenço – e é só – à ordem/em que estão colocadas,/no céu, as estrelas./E à outra ordem –/A em que, no futuro,/Estarão colocadas,/Em redor do meu corpo,/Quatro velas acesas …”. E aqui a ideia abstrata de ordem no poema ganha o conteúdo concreto do poeta diante de seu futuro e da morte, esta ordem maior chamada natureza ou universo.
 
A FACE PERDIDA (1950)
 
CANÇÃO DO MEDO : Aqui o poeta teme mais a vida do que a morte, com toda a demanda da vida, o temor da morte desaparece, o que o poeta teme neste poema é toda a profusão caótica e perigosa da vida, no que temos : “A vida está sempre escondida/no seu grande, seu feroz segredo./Não é a morte que me põe medo;/é a vida.” (…) “Não é a morte que me intimida,/é a vida./Não há nada que me desperte/maior temor do que o destino./O que está por acontecer.”. A figura enigmática da vida então aqui ganha um nome próprio, destino, no que o poema segue : “Destino, noturno destino/que sabemos estar nos espiando/como um misterioso conviva/pelo olhar da pessoa viva./Não é a morte que me amedronta;/é a vida.” (…) “Não é a morte que me põe medo;/é a vida.”. O medo do destino é o medo do enfrentamento da demanda da vida, destino aqui é chamado à ação, no entanto, o poeta diz a verdade disto, o temor que está contido na cobrança visceral de estar vivo.
 
TESTAMENTO : O poema tem aqui uma forma testamentária do que o poeta nos deixa de herança, no que segue : “Deixo os meus olhos ao cego/que mora nesta rua./Deixo a minha esperança/Ao primeiro suicida./Deixo à polícia o meu rasto,/a Deus o meu último eco.”. As imagens do que o poeta deixa são de uma beleza profunda, e o poema segue : “Deixo o meu suor ao fisco/que me cobriu de impostos;” (…) “Às coisas belas do mundo/deixo o olhar cerúleo e brando/com que, nas fotografias,/as estarei, sempre, olhando …/Aos noturnos assistentes/de última hora – aos que ficam,/o sorriso interior e sábio/que nunca me veio ao lábio.”. O poema então acena com um sorriso que o próprio poeta poupou em vida, coda poética por excelência.
 
O ELEFANTE QUE FUGIU DO CIRCO (1950)
 
O ELEFANTE QUE FUGIU DO CIRCO : O poema é uma grande alegoria de um elefante que foge do circo, e aqui temos a descrição física e as ações deste tal elefante, no que segue: “Velho elefante, tão cheio de brincos/e enfeites, que feroz determinismo/se apossou do teu corpo, qual demônio,/que não mais obedeces a ninguém?/Para que venhas, pela rua 15,/desembestado, interrompendo o trânsito?” (…) “Quantas vezes aceitaste o governo/dos histriões e dos imperadores./Eras um coração de pomba. Os pássaros/poderiam gorjear na tua tromba.” (…) “Entretanto com que surpresa enrolas,/na tua tromba, agora, os policiais./Com que fúria, com que desembaraço,/esmagas, sob as tuas patas, um/a um, a qualquer de nós, pobres lírios.”. A força descrita pelo poema que tem o elefante é descomunal, e o poema segue : “Foste um dos animais da preferência/de Noé, para a arca. Não te lembras?/Talvez o mais amado das crianças/pelo que tens de mágico, alegórico./Há qualquer coisa, mesmo, de um monstruoso/brinquedo em teu perfil, teu gordo ser,/que é mui feio, mas gentil de se ver.”. E tal força ganha aqui um ar de encantamento, um ser monstruoso de tamanho, mas que é um ser gordo e gentil que agrada as crianças.
 
POEMAS :
 
O SANGUE DAS HORAS (1940)
 
O SANGUE DAS HORAS
 
Queixei-me de não ter pão
 
e a noite me disse não.
 
Mostrei-lhe a varanda nua
 
e a Noite me trouxe a lua …
 
Você tem sede, não é?
 
E a Noite me deu café.
 
 
São verdes como a esperança
 
as horas em que sou triste :
 
bem que existe não se alcança,
 
só cansa;
 
procuro o que não existe.
 
 
Se a dúvida me procura,
 
pondo a cerração do tédio
 
em minha existência obscura,
 
bebo a esperança, remédio
 
para as feridas sem cura …
 
 
Que dúbio alvor de camélia
 
anda lá fora a flutuar?
 
É a Noite que, de tão velha,
 
Tão velha,
 
criou cabelos de luar …
 
 
A insônia do meu relógio
 
durante a noite passada
 
crivou-me o corpo, já enfermo,
 
de punhaladas sonoras …
 
Meus olhos são duas feridas
 
por onde
 
escorre o sangue das horas.
 
 
Entre o passado e o porvir
 
aqueles peixes de prata
 
não me deixaram dormir.
 
Tomei café sem parar.
 
Bebi treva em goles mudos …
 
Criei cabelos de luar.
 
 
UM DIA DEPOIS DO OUTRO (1947)
 
A IMAGEM OPOSTA
 
Espelho, sub-reptício espelho,
 
meu professor de disfarce.
 
Quem poderá disfarçar-se
 
sem recorrer ao seu conselho?
 
 
É diante dele que componho
 
não só a gravata, meu enfeite,
 
mas o meu jeito de rir, tristonho,
 
para que o mundo me aceite.
 
 
Suspenso defronte à janela,
 
falador, não obstante mudo,
 
ele é o meu jornal tagarela
 
que em segredo me conta tudo.
 
 
Graças ao seu préstimo avisto
 
tudo o que se passa lá fora.
 
E vejo, sem jamais ser visto,
 
a vida que se vai embora …
 
 
Vejo o amigo … (ah, eu o compreendo)
 
o amigo que mais considero.
 
Aquele que só é sincero
 
por não saber que o estou vendo.
 
 
Por uma questão de consciência
 
não censuro o meu amigo,
 
só sincero na minha ausência
 
e não face a face comigo.
 
 
Também – nos atos que pratico –
 
não quero um espelho defronte
 
que me censure, que me conte
 
a estranha cara com que fico.
 
 
Espelho, só pra contemplar-se,
 
em sua superfície nua,
 
tudo o que se passa na rua …
 
Espelho, só que me disfarce.
 
 
Professor de realismo? Nunca.
 
Há um rosto, que ele não me mostra.
 
Sozinho, sou uma pergunta,
 
em meu reflexo uma resposta.
 
 
Ao sinal do menor percalço
 
já comigo não me assemelho.
 
O próprio choro fica falso
 
se chorado diante do espelho.
 
 
O meu rosto é apenas a tampa
 
de um noturno labirinto.
 
Pois em verdade nunca estampa
 
a grande verdade que eu sinto.
 
 
O meu ar de fácil espanto
 
diante da verdade ou do erro,
 
o rir com que disfarço o pranto,
 
a dor com que acompanho enterro,
 
 
tudo isto aprendi num espelho,
 
secretamente, sem alarme.
 
E como agora fantasiar-me
 
de novo, sem o seu conselho?
 
 
O olho de cristal, severo!
 
com que a minha face investigo.
 
Digo-te tudo, só não digo
 
que me ensinaste a ser sincero.
 
 
GEOMETRIA CIVIL
 
Eu tenho um corpo
 
feito de barro vil
 
mas cheio de deveres
 
e obediência civil.
 
 
 
Sou um transeunte
 
em dia com o código
 
da ética pedestre.
 
 
Não raro invento dívidas
 
só pelo prazer
 
de saldá-las lesto,
 
antes do protesto.
 
Para depois entrar
 
entre festões vermelhos
 
num salão de baile
 
cumprimentando-me cordialmente
 
nos espelhos.
 
 
Exato no meu fato
 
azul, sob medida;
 
exato na cesura
 
de um verso alexandrino;
 
exato se combino
 
um encontro de dois,
 
pois chego à hora certa,
 
nem antes nem depois.
 
 
Exato – se procuro
 
te beijar no escuro
 
não erro a tua boca
 
entre os pontos cardeais
 
de minha geografia
 
amorosa;
 
enfim, sou tão exato
 
como é o número
 
do meu sapato.
 
 
Sofro, também, de ordem.
 
Da irrecorrível ordem
 
que aceitei por herança.
 
Em vão as vespas
 
da revolução me mordem.
 
 
Minha geometria
 
é uma coisa viva
 
feita de carne e osso.
 
Um ângulo quebrado
 
logo escorre sangue.
 
Todo o meu futuro
 
é um retângulo obscuro …
 
 
Estes meus dois braços
 
são linhas paralelas
 
que se cruzarão em viagem
 
para algum infinito.
 
A lua, esfera fria,
 
me ensinou, em garoto,
 
a riscar bolas de ouro,
 
sem compasso,
 
na aula de geometria.
 
 
Ah, eu sofro de ordem,
 
mas em vão;
 
pois não ganhei, com isso,
 
nenhum laurel, comenda,
 
ou condecoração.
 
E nem pertenço à Ordem
 
Do Cruzeiro.
 
 
Pertenço – e é só – à ordem
 
em que estão colocadas,
 
no céu, as estrelas.
 
E à outra ordem –
 
A em que, no futuro,
 
Estarão colocadas,
 
Em redor do meu corpo,
 
Quatro velas acesas …
 
 
A FACE PERDIDA (1950)
 
CANÇÃO DO MEDO
 
A vida está sempre escondida
 
no seu grande, seu feroz segredo.
 
Não é a morte que me põe medo;
 
é a vida.
 
 
Fere-me ouvir, durante a noite,
 
o meu coração funcionando …
 
Pobre coração errado
 
culpado da minha alegria.
 
Parece que o ouço, algum dia,
 
como um músculo que soluça
 
já retirado do meu peito
 
e ainda vivo, sobre a mesa,
 
para alguma experiência russa.
 
Não é a morte que me intimida,
 
é a vida.
 
 
Não há nada que me desperte
 
maior temor do que o destino.
 
O que está por acontecer.
 
O mistério que nos irmana
 
(por qualquer coisa de divino)
 
a outra criatura humana.
 
 
Destino, noturno destino
 
que sabemos estar nos espiando
 
como um misterioso conviva
 
pelo olhar da pessoa viva.
 
Não é a morte que me amedronta;
 
é a vida.
 
 
Há uma rosa rubra, é a rosa
 
de sangue que ficou na calçada,
 
depois da fúria homicida.
 
As rosas que eram cor-de-rosa
 
agora estão brancas de medo.
 
Não é a morte que me põe medo;
 
é a vida.
 
 
TESTAMENTO
 
Deixo os meus olhos ao cego
 
que mora nesta rua.
 
Deixo a minha esperança
 
Ao primeiro suicida.
 
Deixo à polícia o meu rasto,
 
a Deus o meu último eco.
 
Deixo o meu fogo-fátuo
 
Ao mais triste viandante
 
que se perder sem lanterna
 
numa noite de chuva.
 
Deixo o meu suor ao fisco
 
que me cobriu de impostos;
 
e a tíbia da perna esquerda
 
a um tocador de flauta
 
para, com o seu chilreio,
 
encantar a mulher e a cobra.
 
Às coisas belas do mundo
 
deixo o olhar cerúleo e brando
 
com que, nas fotografias,
 
as estarei, sempre, olhando …
 
Aos noturnos assistentes
 
de última hora – aos que ficam,
 
o sorriso interior e sábio
 
que nunca me veio ao lábio.
 
 
O ELEFANTE QUE FUGIU DO CIRCO (1950)
 
O ELEFANTE QUE FUGIU DO CIRCO
 
I
Velho elefante, tão cheio de brincos
 
e enfeites, que feroz determinismo
 
se apossou do teu corpo, qual demônio,
 
que não mais obedeces a ninguém?
 
Para que venhas, pela rua 15,
 
desembestado, interrompendo o trânsito?
 
 
Mal feito, a pele mal adstrita ao corpo,
 
como uma vestimenta já sem dono,
 
suja e antiquada, olhos ainda bíblicos
 
no século XX. Ainda africano
 
na concepção do movimento, próprio
 
para os passeios régios, com escada
 
de seda verde, pela qual os pajens
 
sobem-te ao dorso – dorso em ouro e prata.
 
Quantas vezes aceitaste o governo
 
dos histriões e dos imperadores.
 
Eras um coração de pomba. Os pássaros
 
poderiam gorjear na tua tromba.
 
A qualquer hora, mal surgisse a aurora.
 
Entretanto com que surpresa enrolas,
 
na tua tromba, agora, os policiais.
 
Com que fúria, com que desembaraço,
 
esmagas, sob as tuas patas, um
 
a um, a qualquer de nós, pobres lírios.
 
Movendo as dobras e agitando as sobras
 
da pele flácida, velha capa preta
 
com que passeavas, solto, na floresta,
 
ou entre deusas, nos festins assírios.
 
 
Foste um dos animais da preferência
 
de Noé, para a arca. Não te lembras?
 
Talvez o mais amado das crianças
 
pelo que tens de mágico, alegórico.
 
Há qualquer coisa, mesmo, de um monstruoso
 
brinquedo em teu perfil, teu gordo ser,
 
que é mui feio, mas gentil de se ver.
 
(obs : este poema é longo e continua, aqui temos apenas a sua primeira parte).
 
 
Gustavo Bastos, filósofo e escritor

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