O BORGES CONTISTA
O Aleph é um conjunto de 17 contos escrito pelo autor argentino Jorge Luis Borges que foi publicado em 1949 e que é um dos pontos mais altos que atingiu a literatura borgiana, que nunca concebeu um romance, mas que foi feita por contos, ensaios, crítica literária e poesia, e o poder sintético e de erudição dos contos borgianos, por sua vez, tinham uma densidade suficiente para abarcar um universo completo que mesmo muitos romancistas não alcançaram.
O conto em Borges adquire uma dinâmica própria de referências reais e inventadas, dando um lugar próprio do conto na literatura universal, Borges representa uma voz universal e abrangente de uma complexidade poliédrica que exige do leitor preparo enciclopédico na proporção original de suas maquinações nos contos, que juntando a erudição real e inventada, cria uma imaginação fantástica, mas que ganha certo ar de verossimilhança, dado o caráter convincente do que Borges narra em seus contos, como um prestidigitador com habilidade especial para nos conduzir num mundo vasto e labiríntico.
O IMORTAL
No conto “o imortal” já temos um Borges como um inventor que une literatura e filosofia, em que a Ilíada funciona na sua referência como uma homenagem alegórica e bem própria de Borges ao mestre grego Homero. A narrativa borgiana então se coloca na perspectiva erudita de um relato que evoca uma lembrança de uma parte da Ilíada, num jardim de Tebas, ou talvez no Egito, se buscava o rio “que purifica os homens da morte”. O conto é um relato da questão da imortalidade e de como seriam seus efeitos, no que temos uma visão pessimista de Borges, que povoa a tal Cidade dos Imortais de rudimentares trogloditas, que nem sabem se expressar, e o tédio poderia ser um destes efeitos de uma vida imortal, sem as demandas de um mundo real, de um mundo que respira ou que dói.
A viagem é bem descrita, Borges nos enumera um mundo mítico vasto, a dita Cidade dos Imortais não tem nada de fascinante, no entanto. A parte que cabe de intento filosófico é fazer uma descrição devastadora do que seria esta condição sobrenatural dos imortais, uma vez que na mitologia esta imortalidade era privilégio dos deuses, e aqui com Borges ela é objeto de um escárnio composto por seres ignorantes, o rio que leva este conto conduz ao nada, ao mundo sem movimento, que é o mundo em que a morte foi abolida, e o desejo da imortalidade pode ser que seja este nada de que o mortal padece.
O paradoxo que Borges levanta é desconstruir o que a imortalidade poderia ter de sedutora, colocando os trogloditas como estes habitantes de um mundo empacado numa plenitude que é vento, vácuo e vazio. E a imagem cara do labirinto borgiano só vem para reforçar o desamparo e desorientação que reina na Cidade dos Imortais, e a insensibilidade deste mundo é que se pode ser todas as coisas, numa espécie de eterno retorno, mas em que não se é nada, um homem cai de um penhasco e nenhum dos imortais faz nada, a piedade sumiu neste mundo imortal.
OS CONTOS ARGENTINOS
No conto “o morto”, por sua vez, temos um relato de valentia de um homem do subúrbio de Buenos Aires, Benjamin Otálora, uma das incursões de Borges na Argentina com uma alegoria vestida de História, assim como se dá nos contos “Biografia de Tadeo Isidoro Cruz” (este tendo origem na obsessão borgiana chamada Martin Fierro), e na “História do guerreiro e da cativa”, Otálora que vai ao Uruguai, viver como um gaúcho, com toda a demanda de perigo, e armada na imagem de Azevedo Bandeira, o cheiro de cavalo, a vida no meio do gado, a planície selvagem que ignora a cidade, vidas embrutecidas de álcool reinam no cenário briguento deste conto bem argentino, à moda Borges.
OS TEÓLOGOS RIVAIS
No conto “os teólogos” temos uma competição entre Aureliano e João de Panônia, envolvendo a ideia de um tempo cíclico, circular, herdado de um trecho que sobrevive de Platão, na verdade a Civitas Dei agostiniana relatando um episódio que narra o que Platão ensinou em Atenas, depois de uma invasão dos hunos numa biblioteca monástica, em seu ódio contra as letras, possuídos de um deus deles que era uma cimitarra de ferro.
E da seita dos monótonos, Aureliano sabe de uma doutrina que pregava exatamente esta ideia complexa da Roda, a história como um círculo alijando a outra ideia da Cruz. Aureliano tenta se adiantar no seu estudo, lê Plutarco, e ali, numa zombaria contra os estoicos, se recusa a heresia em questão, e Aureliano trata também logo de refutá-la. Seu movimento era no sentido de se antecipar a seu rival João de Panônia. Num elenco vasto em forma de escárnio, o trabalho de Aureliano, também brandindo o texto de Plutarco contra os monótonos, se depara logo com um trabalho “irrisoriamente breve” de João de Panônia, este que começava glosando os capítulos finais do capítulo IX da Epístola aos Hebreus, e com João temos a defesa da Cruz e da eternidade contra o tempo circular, e Aureliano sentiu uma humilhação “quase física”.
E eis que surge uma outra heresia, um cisma que vai despontar no oriente como Macedônia e Cartago, também na Bretanha, em que os crucifixos tinham sido invertidos, e Cesárea que presencia a suplantação da imagem do Senhor por um espelho. Começa então um ascetismo que herda dos Livros Herméticos e do Zohar a ideia de que o que está embaixo é igual ao que está em cima, e com o espelho isso transforma todo o mundo material num simulacro, era a doutrina enlouquecida dos que foram denominados histriões, que fizeram nada mais que uma versão pervertida da ideia original dos herméticos, confusão com a qual João de Panônia pagará com a morte, através da intriga de Aureliano, e a indiferença do céu ao fim coloca os dois teólogos rivais como a mesma pessoa, num sentido de que a morte e ascensão da alma igualam os homens, não importa quem é o herege ou o ortodoxo.
OS LABIRINTOS DE BORGES
E temos também no livro de contos O Aleph, um conjunto de três contos labirínticos ou sobre labirintos, o “a casa de astérion” é um que se encerra evocando Ariadne e o Minotauro, e que é um conto em que se descreve a repetição incessante de cenários e objetos, uma multiplicidade também circular, como na heresia do conto dos teólogos, e a repetição dá aqui sentido de opulência, e um astérion isolado no seu refúgio, não precisa da arte da escrita nem do pensamento dos filósofos, se basta, e inventa para si um duplo, que também participa da profusão de repetições que é o cenário do conto circular, labirinto de Creta em sua versão num conto sintético e enxuto.
O outro conto labiríntico é “aben hakam, o bokari, morto em seu labirinto”, e este encerra tanto as agruras de um rei de Babel paranoico, como de uma confusão da memória na narrativa, desta que também participam como seus emissários, Dunraven e Unwin, a morte de Aben Hakam é um paradoxo em que o teste é feito dele com seu primo Said, com as mortes de alguns de seu povo, Aben Hakam as carregou para o seu labirinto, onde seus fantasmas lhe assediaram, o bokari, e este que no fim troca ou se inverte, ou melhor, é Said que usa o seu nome, a morte e o labirinto podem ser um tipo alegórico de confissão de culpa, Aben Hakam é um rei atormentado. E no conto breve “os dois reis e os dois labirintos”, por sua vez, a imagem do labirinto é condensada num sopro, na verdade o labirinto luxuoso do rei da Babilônia, e o outro labirinto, o deserto árabe, no qual o rei dos árabes faz o rei da Babilônia morrer de fome e de sede.
A BUSCA DE AVERRÓIS
No conto “a busca de averróis” temos a trama que envolve Averróis no seu trabalho monumental de comentário à obra de Aristóteles, enquanto não dá mais tanta prioridade a seu trabalho do tahafut, temos neste conto o confronto da palavra do Corão como a verdade divina, uma manifestação do próprio Deus, mais do que um simples conjunto de palavras narradas, uma faculdade materializada assim como o é a piedade divina, este Deus que é repetido na memória dos seus fiéis.
O Corão é substância e um dos atributos de Deus, irrevogável e eterno, no que Averróis compara tal faculdade absoluta com a Mãe do Livro para ele que vinha a partir de seu estudo feito da República, o modelo platônico, teologia inacessível para homens árabes tradicionais como era Abulcassim, assim enfim lembrando que a Mãe do Livro neste contexto é o Corão, verbo divino anterior à Criação. E um dos pontos ou eixos do conto é a luta do pesquisador Averróis com a tradução das palavras comédia e tragédia na Poética de Aristóteles, uma vez que no Islã se ignorava completamente o que era o teatro.
O CONTO O ALEPH
No conto que encerra o livro e que lhe dá título, O Aleph, temos um começo breve com a descrição pelo personagem Borges de sua paixão Beatriz Viterbo, e logo em 1929 ela morre, segue-se então o conhecimento que Borges nos dá do poeta medíocre e pedante Carlos Argentino Daneri, Borges que lhe dá assunto e este poeta enfadonho lhe dá o caráter de sua poesia, um arremedo que junta Odisseia com Os Trabalhos e os Dias, segue-se o produto disforme de uma métrica desengonçada e frouxa, como um poeta ao qual lhe afeta uma febre de estro insignificante, com Borges ficando enfadado com a possibilidade de lhe prefaciar o livro, o qual considerava um vasto empreendimento tedioso, sem nada que fosse memorável.
Borges balança entre os delírios de grandeza de Carlos Argentino Daneri, e ao fim o julga um louco quando este poeta lhe diz que há um Aleph que está no porão da sala de jantar, e que o Aleph era o ponto de convergência do mundo, era ali que tudo era contido, os objetos e seres, visto que sua simultaneidade não era a do tempo, mas a do espaço, e Borges duvida, até que vê através do Aleph um mundo inteiro de fatos e cenas, tudo ao mesmo tempo, como um rico poliedro com todas as formas possíveis.
Então tem o lançamento do livro de Carlos Argentino Daneri, livro com o qual este poeta granjeia o Segundo Prêmio Nacional de Literatura, com Borges ao fim nos lembrando que o Aleph é a primeira letra do alfabeto sagrado, com origens na cabala, que é nesta versão En Soph, a ilimitada e pura divindade, que também tem a forma de um homem que aponta para o céu e para a terra, como no conto dos teólogos, no que temos novamente a presença desta ideia clássica e conhecida dos Livros Herméticos. O Aleph nos aparece aqui como uma mônada universal, convergência dos espaços do mundo, em que a visão humana fica fascinada, como a de Borges ficou, no que fez então seu relato insólito.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
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