Fotos:Leonardo Sá
Todo dia ele faz tudo sempre igual. Acorda às 5 horas da manhã. Liga a TV e assiste em sequência os programas matinais até começar o “daquela mulher com o papagaio”. Aí vai despertar sua esposa, preparar o café e logo o almoço. Se o primeiro tempo é em casa, depois do almoço o sambista Édson Papo Furado, 79 anos, bate ponto no segundo e terceiro turnos nos bares do Centro de Vitória, especialmente no Bar do Nei. “É o mais perto de casa”, diz. “Todo dia eu tô aqui, de segunda a segunda”.
A esposa o leva e busca todo dia. Desce e caminha com sua bengala até a mesa de plástico localizada na calçada, à porta do estabelecimento, na qual está escrito: “Édson Papo Furado – Reservado”. A cadeira à esquerda, olhando para a rua, é a sua. Se tiver ocupada, quando ele chega, a pessoa levanta. “É um respeito bonito”.
O cantor e os funcionários e frequentadores já têm suas estratégias para facilitar a vida de Papo Furado. Ruim das vistas, lento do caminhar, o que pode piorar depois das oito a dez doses de cachaça que “Papito” toma diariamente, segundo informação da fonte mais confiável, que é o garçom. Cerveja toma pouco. Não faz mais refeições após o almoço, apenas belisca. Quando quer algo tira da bolsa um sininho que' toca para chamar o atendimento. “Não vou gastar minha voz”. Pede um petisco, que o garçom traz no palitinho e o serve na boca.
Conversamos com Papo Furado no Bar do Nei enquanto ele esperava o preparo de um peru assado que alguém arrumou para assar. O sambista cuidou de convidar a patota dos mais chegados. Chegou em meados da tarde e como de tradição comprou um picolé de fruta na sorveteria de frente. Coloca o picolé no copo americano com uma dose de cachaça, deixando-o derreter. “Enquanto derrete eu tomo outra dose de purinha”, diz apontando para outro copo ao lado.
Um transeunte para e cumprimenta seu “Zeca Papo Furado”, talvez confundindo o nome inicial com o do famoso Zeca Pagodinho. Lembra de quando trabalhou no barco da Caravela do Descobrimento, no ano 2000, e navegou junto com Papo, que havia sido convidado para cantar em Cabrália, na ocasião dos 500 anos do “descobrimento”. “Foi o dinheiro mais fácil que já ganhei”, comenta Édson. Foram horas de viagem de barco com tudo liberado e ainda ganhou cachê generoso pelo show. Da mesma viagem ainda se gaba de ter tomado nove doses de “capeta” na Passarela do Álcool, em Porto Seguro, quando a vendedora garantira que ninguém passava da quinta dose. “Depois dormi por um dia e meio”.
Tento, com dificuldades, tomar as rédeas da entrevista enquanto o transeunte não para de falar. Aceito as consequências de marcar uma entrevista no bar, mas não poderia haver local mais apropriado para falar com Édson Papo Furado. Do que você mais gosta na vida? Ele diz, sem hesitar: cachaça. “E a mulherada, seu Zeca?”, interfere o transeunte que não foi corrigido sobre o nome do sambista. “Mulher depois da cachaça”, retruca o Papito. “O que mais gosto da vida é viver, meus amigos. Não preciso de dinheiro porra nenhuma. Quero muita amizade, muito carinho e saúde”, complementa.
A noite vai se esparramendo pela Rua Sete. Às 18 horas, quando se houve o sino da Catedral, ele faz o sinal da cruz e uma oração silenciosa. “Que Deus abençoe a todos nós”, diz em voz alta.
Pergunto, então, se costuma ir à igreja e ele diz que não muito. Lembra que da última vez que foi, acompanhando a esposa, antes passou no Bar do Gegê, também nas proximidades, e levou uma garrafa de cachaça, devidamente guardada na bolsinha que costuma levar a tiracolo. Quando todos se levantaram para alguma parte litúrgica, aproveitando a condição de idoso, Édson permaneceu sentado. Olhou para um lado e para o outro, todos de pé, e não hesitou, abriu a bolsa, tirou a garrafa e tchum: tome gole de cachaça. Pego em flagrante, conta que foi expulso da missa na Catedral.
Papo vai e papo vem (o sambista continua sentado), a noite se estabelece, mas o peru assado ainda está só no cheiro. Mas segue o Papo a nos divertir. Ele conta sobre quando foi convidado a fazer parte de um ato em protesto contra a perseguição e proibição de atos culturais na Rua Sete, no ano passado. O formato era de um cortejo fúnebre, todos de preto com velas nas mãos, representando um luto pela morte da cultura no Centro. Sabendo do caráter brincalhão do sambista, o convidaram para ocupar a honrosa posição de protagonista do enterro simbólico, deitando-se dentro do caixão que ia ao centro do cortejo. Perguntaram se ele teria coragem de entrar no caixão. “Vivo sim, morto não tenho coragem não”, respondeu.
E assim foi ajudado a subir, erguido e carregado pela rua em que tanto viveu, chacoalhando dentro do objeto de madeira, com as mãos no peito e a begala entre as pernas. Olhou para um lado e viu alguém com cachaça. Pedia um gole, sentava no ataúde e descia uma dose, sabendo que depois viria o esporro. “Deita aí, nunca vi morto sentado!”, dizia alguém. Do outro lado, um fumante lhe passava um cigarrinho. A certa altura fecharam a tampa e quando abriram saiu um fumaceiro só.
Édson Papo Furado, definitivamente, não sabe morrer. Diz que se puder viver 200 anos, quer viver 202. Duzentos para viver e mais dois para contar tudo o que fez e não fez.
Eu quero viver, não trabalho mais. O que mata é o trabalho. Já ouviu dizer que cachaça mata? O que mata é cirrose, queda, atropelamento, mas a cachaça não mata. Tomo cachaça e até hoje não morri”, brinca.
Uma vida que começou há tanto tempo atrás e ele só tem a agradecer. Nasceu na Serra Sede, onde começou a bater congo. Aos dez anos de idade veio morar nos morros ao redor do Centro de Vitória. Na adolescência chegou a ser dançarino de rock, mas foi no samba que se encontrou, desde as batucadas que via quando criança e do bloco Amarra o Burro, até a fundação da Unidos da Piedade, primeira escola de samba capixaba, em 1955.
Lembra da primeira vez em que cantou no desfile da escola, “porque não tinha ninguém” para fazê-lo. Enquanto desciam a ladeira, as mãos do jovem Édson tremiam empunhando a “boca de ferro”, nome respeitoso que dá ao microfone. Reclama de que hoje o puxador de samba é acompanhado por outros dez cantores e cantoras. “Num dá gosto não. Gosto é de pegar a boca de ferro e sentar o pau sozinho. Com um monte de gente pra ajudar, cadê a sua voz? Vai pra onde?”
Confessa certo desânimo em participar de sua escola de coração e critica que hoje a maioria das escolas se distanciou das origens. “Os presidentes mandam e desmandam. Não tem mais comunidade. Quem joga a escola pra cima é a comunidade”, reclama.
Mas não deixa nunca de torcer e, se possível, de participar. No ano passado, apesar dos problemas de vista e locomoção, desfilou pela Piedade e foi ovacionado no Sambão do Povo. “Queriam me botar no carro [alegórico]. Eu falei que não, que ia andando. Desfilei o sambão todinho. Eu não via nada não, só o vulto das pessoas. Dançava, rodopiava, o pessoal batendo palma. Fiz igual um macaco fazendo macaquice. Desfilei minha escola todinha”.
A euforia de haver defilado era tanta que se animou a tomar umas e ao chegar em casa de manhã ainda se aventurou a descer a ladeira num triciclo com que os vizinhos brincavam. Tentou frear sem sucesso e capotou. Machucou? “Sei lá, tava bebo. Mas não morri de triciclo, não”, garante, vivíssimo.
À beira dos 80, conservado no álcool, cercado de samba e amigos, Édson Papo Furado é só alegria e gratidão. Tem a vida que pediu a Deus. Ouve no brinde ao lado o grito de saúde. Ergue o copo e diz: deixa eu pegar essa saúde de vocês também. Grita: “saúde!” E brinda junto. Rumo aos 202.
O peru assado enfim é servido e Papo Furado se levanta. Não para comer, mas para tocar. Com ajuda sobe dois degraus, senta dentro do bar e empunha o violão. A banda se forma rapidamente e o samba rola solto noite adentro, com a espontaneidade que o faz perpetuar pelos tempos.