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Crise na Ancine afeta investimentos no audiovisual capixaba

São 21 projetos que aguardam liberação de R$ 9,5 milhões para o setor, fortemente afetado pela pandemia

A pandemia do coronavírus teve um impacto forte para toda cadeira cultural. Entre eles o cinema e o audiovisual, que no Espírito Santo vivem a expectativa de receber o maior investimento da história por meio de uma parceria da Secretaria de Estado da Cultura (Secult) e o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), vinculado à Agência Nacional de Cinema (Ancine).

A agência nacional multiplicou por quatro cada real destinado pelo governo do Estado, resultando num total de quase R$ 12 milhões de investimentos no setor, que vem se desenvolvendo de forma significativa no Espírito Santo nos últimos anos, tanto no ponto de vista da formação e capacitação de profissionais, como da consolidação das empresas produtoras. Porém, o cenário nacional com cortes e ataques do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) à Ancine e ao cinema brasileiro aumentam a incerteza sobre as políticas públicas e investimentos no audiovisual.

No meio disso tudo, estão mais de R$ 9,5 milhões para produtores do Espírito Santo que ainda esperam por liberação e poderiam ajudar a aquecer um setor muito afetado pelo atual momento de exceção. Na verdade, o edital deveria ter sido lançado em 2018, mas devido aos atrasos burocráticos no acordo entre as entidades estadual e nacional, a chamada só foi realizada em agosto de 2019, de modo que o último edital para o setor era de 2017. Mas consolidados os resultados do processo de seleção, a Secult liberou no final do ano passado os recursos do edital 2019, que dependiam apenas do Fundo Estadual de Cultura (Funcultura), o que corresponde a 73 projetos e quase R$ 2,39 milhões.

Os 21 projetos que recebem o investimento do FSA da Ancine são justamente, porém, os mais robustos e correspondem a 80% do valor total do edital, incluindo produção de seis longa-metragens, produção e desenvolvimento de obras destinadas ao mercado de televisão e a formação de Núcleos de Desenvolvimento Audiovisual, uma novidade que fortalece as empresas produtoras locais e ajuda no desenvolvimento de cinco novos projetos audiovisuais em cada núcleo selecionado.

Segundo respondeu ao Século Diário por nota, a Ancine justifica que desde o início da atual gestão, adotou um conjunto de medidas para a regularização da situação orçamentária e financeira do FSA e o restabelecimento da capacidade operacional da Agência, o que levou à suspensão em abril de 2019 de todos os repasses a projetos já aprovados, assim como o lançamento de novas linhas de financiamento.

“Os diagnósticos apontaram que o FSA tinha aproximadamente R$ 944 milhões em compromissos assumidos, conforme informado na Nota Pública de 05 de junho de 2020. Por sua vez, as disponibilidades financeiras eram de R$ 738 milhões, aí compreendidos também os R$ 441 milhões relativos a 2019. Portanto, um descompasso financeiro da ordem de R$ 206 milhões para investimentos”, justificou a Ancine ao Século Diário. Segundo a agência, os valores disponíveis para investimento em projetos audiovisuais não eram suficientes para cumprimento dos compromissos assumidos até o fim de 2018 nem para o lançamento de novas chamadas ou para o pagamento dos agentes financeiros do Fundo.

Produtores de audiovisual ouvidos pela reportagem apontam que a morosidade na liberação de recursos não é novidade por parte da Ancine, que parece ter uma estrutura de pessoal insuficiente para dar conta do tamanho da demanda a nível nacional, que são justificadas com respostas pouco esclarecedoras para as autoridades e menos ainda para os produtores, que geralmente recebem informações genéricas dadas por técnicos da agência, que não são os que têm poder real de decisão sobre as questões

A situação piorou no governo de Michel Temer e se agravou ainda mais com Bolsonaro, que vê a classe artística e o cinema em especial com animosidade por apresentarem produções críticas em diversos aspectos e um histórico posicionamento progressista em sua maioria. “A cultura vem para Brasília e vai ter um filtro sim, já que é um órgão federal. Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos ou extinguiremos. Não pode dinheiro público ser usado para fins pornográfico”, foi a fala literal do presidente, insuflado pelo denuncismo de seus militantes focado no filme Bruna Surfistinha, que recebeu cerca de R$ 4 milhões em investimentos e arrecadou R$ 20 milhões em bilheteria, incluindo geração de empregos e pagamento de impostos que retornaram ao governo federal.

O que Bolsonaro chama de “filtro” na verdade é a tentativa de censura em sua cruzada ideológica ultra-conservadora. Ao ameaçar fechar ou privatizar o órgão como bravata, o presidente explicita sua falta de conhecimento sobre o tema, já que uma agência reguladora não pode ser privatizada, e sua extinção não está totalmente nas mãos do governo, pois dependeria de uma aprovação do Congresso Nacional, o que parece bastante improvável no momento.

Enquanto isso, Bolsonaro amplia a participação de pessoas ligadas ao cinema cristão nos cargos de gerência da agência, como registrado pela imprensa nacional. Além disso, desde agosto de 2019 a Ancine está sob gestão interina de Alex Braga Muniz, que assumiu a presidência do órgão provisoriamente após a demissão de Christian de Castro Oliveira, denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) por repassar informações sigilosas da agência a um sócio seu em 2017.

Recursos ajudariam em momento de grave crise

A combinação dos fatores técnicos, burocráticos  e políticos preocupa ainda mais aqueles que dependem dos recursos federais para dar início a novos projetos ou finalizar obras em curso. No Espírito Santo, os processos com a Secult terminaram em dezembro de 2019 e com a Ancine só tiveram início em março de 2020. Há três meses, estes se encontram na fase de análise complementar, que costuma ser a mais demorada do processo na agência nacional.

A Ancine afirma que os problemas orçamentários já foram solucionados e até o começo da próxima semana terão início as contrações dos projetos já aprovados, em ordem cronológica de contratação, com prioridade para projetos já filmados, bem como os projetos de animação e de jogos eletrônicos em produção, e aqueles com comercialização e distribuição concluídas. “Projetos que não tenham concluído a produção deverão ser diligenciados acerca de uma eventual adequação à realidade atual. Também terão prioridade os projetos que comprovarem a garantia de financiamento de no mínimo 80% do orçamento”. A resposta é pouco animadora para os projetos aprovados no Espírito Santo, que entram no final da fila e não podem ter uma perspectiva temporal sobre os recursos, dado o histórico de morosidade do órgão. E o processo ainda pode demorar mais devido à diligência para adequação à pandemia, já que os processos pendentes do Espírito Santo ainda não iniciaram as atividades. 

“O setor é muito dependente de políticas públicas e o atraso na liberação de verbas atrasa o planejamento de empresas que têm uma vida comercial. E a pandemia afeta totalmente o setor. O recurso agora ajudaria colaboradores da produtora, pessoas envolvidas com o projeto”, considera Thiago Moulin, da Lumen Produções, que aprovou a série de TV Atingidos, sobre as populações afetadas pelo crime da Samarco/Vale-BHP no Rio Doce.

“A incerteza da realização acarreta a paralisação de quase todo o processo. Poderíamos já estar em pré-produção agora e contratando pessoas diretas e indiretas. Na nossa pré, estávamos prevendo trabalhar com algo em torno de 15 pessoas, ou seja, essas pessoas poderiam estar trabalhando agora e movimentando a economia dos seus bairros, porém com a incerteza do recurso, isso tudo não acontece”, afirma Diego de Jesus, que aprovou no edital da Secult/FSA a produção de seu primeiro longa-metragem, intitulado Adeus, Verão.

Devido à pandemia, os projetos que estavam prontos para iniciar ou já haviam começado tiveram que ser paralisados devido às medidas de isolamento social, e o setor ainda estuda as formas seguras de poder voltar a realizar filmagens. Por isso, caso houvesse recurso liberado, o período seria propício para a pré-produção dos novos projetos. Enquanto ajustam as contas para o momento de crise diante do Covid-19, os profissionais e produtoras do cinema e audiovisual vêm apostando no desenvolvimento de novos projetos, elaboração de roteiros, cursos de formação e ampliação de novas parcerias para que que possam entrar preparados para executar os projetos represados no período de pós-pandemia.

“Vale lembrar que as verbas que alimentam o Fundo Setorial do Audiovisual vêm da própria indústria sobre o consumo de audiovisual. É imposto da área. A Cultura não está indo atrás de dinheiro que não é dela. Precisamos ficar muito atentos pra não olharmos para as questões erradas. Cultura é educação, desenvolvimento e cidadania”, explica Leandra Moreira, que trabalha como produtora na empresa 55 Cine, que aprovou três projetos com recursos da Ancine. Ela acompanhou como presidente da Associação Brasileira de Documentaristas do Espírito Santo (ABD Capixaba) o lento desenrolar desde o início da parceria estadual com o FSA, em 2018.

Saídas possíveis

Alguns projetos de outros estados recorreram a ações judiciais para tentar a liberação dos recursos a que têm direito, mas estes se arrastam juridicamente entre liminares. Mas tanto Leandra como Diego de Jesus, novo presidente da ABD Capixaba, descartam no momento a judicialização do caso, vista como último recurso. “É uma ação cara que envolve advogados de outros estados, pois a Ancine fica no Rio de Janeiro e o BRDE, que é o banco operador do FSA, fica no Sul do país. Então teríamos que usar dinheiro que não temos para isso. Corre o risco de endividamento”, afirma Diego.

Antes disso, a maioria dos produtores capixabas aposta em outras formas de ação, a começar com aumento da pressão pela liberação dos recursos. Há um grupo de contato entre os produtores com projetos aprovados pelo FSA no Estado. “Temos trocado ideias e discutido ações, acompanhado passo a passo a situação de cada um. Acredito que a própria Secult possa auxiliar, solicitando mais celeridade no processo, sendo proativa, uma vez que ela também faz parte desta equação”, indica Leandra Moreira. A secretaria estadual afirma que além de pagar a parte que lhe cabe dos editais, já oficiou duas vezes a Ancine a prestar esclarecimentos a respeito dos projetos ainda não contratados, mas não obteve resposta.

Outra estratégia considerada pelos produtores é pressionar deputados e senadores do Espírito Santo para que intervenham na esfera federal e os recursos sejam executados e venham para o Estado. “Estamos falando de quase R$ 9,6 milhões de recursos federais que têm que vir para o Espírito Santo e agora corremos o risco de não tê-los. Em uma época de crise e de pandemia, abrir mão desse recurso é burrice política”, aponta Diego de Jesus.

Para Leandra, a situação atual é reflexo do descaso que a cultura vem sofrendo nos últimos anos e a pandemia joga luz a questões relevantes e até então pouco consideradas, como a importância do audiovisual e da cultura em geral, evidenciada diante do momento de confinamento. “A arte nos ajuda a sonhar. Mas, neste mesmo momento, praticamente toda a cadeia produtiva da cultura está paralisada”.

Para ela, mais do que falta de vontade política dos últimos governos, haveria aí uma estratégia que afeta os investimentos e políticas para cultura. “Temos que ter muita cautela e cuidado ao discutirmos o tema. Em momento algum está em discussão o importantíssimo papel da Ancine e dos Fundos que gerenciam os impostos provenientes do setor audiovisual. O foco é a agilidade na qual o órgão caminha, o que acaba por comprometer a produção, o consumo e a cadeia profissional do audiovisual”, afirma.

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