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Dostoiévski e a tragédia do homem

O drama existencial em seu sentido universal é uma das linhas constantes do romance dostoievskiano, e que é muito bem representada pela tragédia interior de Dimitri Karamazov, este que é um exemplar do que seria esta tragédia em toda a humanidade, uma vez que o íntimo do ser aqui fica igual para todos, o sofrimento é uma das coisas da vida que mais nos torna semelhantes e irmãos numa mesma senda universal.  

 

A iniquidade é um dos temas que Dostoiévski aborda com a presença sensual de Dimitri, este que é um personagem que passa por todas as tentações e comete um cabedal amplo de pecados, e que ainda assim, no fundo do abismo de uma existência decaída, ainda entrevê uma centelha de uma verdade divina e suprema. E no que se refere ao romance Os Irmãos Karamazov, quando citamos Ivan, Dimitri e Aliocha Karamazov, segundo Hamilton Nogueira, estes “podem ser considerados como símbolos das mais fortes tendências do ser humano. Eles representam mesmo, segundo alguns críticos, três fases diferentes da vida de Dostoiévski.”

 

Ivan é a personagem que faz uma rebelião contra a divindade e o plano da criação por simplesmente ser incapaz de tanto entender como encarar com galhardia o sofrimento, ele é um ser que se nutrirá da revolta, do orgulho, enquanto Dimitri, por sua vez, será a personagem dominada pela concupiscência, e Aliocha, por fim, será uma espécie muito especial e iluminada de alma renunciante, na linha de contato com a plenitude espiritual, e que com este caráter luminoso consegue dominar os seres de seu meio.

 

Portanto, Aliocha e Ivan são personagens mais definidos e constantes no seu caráter geral, Aliocha na bondade, e Ivan na rebelião, o que não ocorre no caso de Dimitri, personagem que oscila muito mais, e que, portanto, tem um trânsito existencial mais intenso e mais rico em situações, o tornando mais humano que as outras duas personagens.

 

Nas contradições das personagens dostoievskianas temos a revelação de um aspecto psicológico profundo em que se fundamenta a visão de uma dualidade, de um confronto ou conflito entre tendências angelicais e demoníacas, e que juntas e equilibradas na própria tensão explosiva formam o que chamamos de humano, esta oscilação entre extremos que é nada mais que a riqueza plena e intensa de personagens complexas e nada previsíveis.

 

O lado da miséria como objeto de humilhação é muitas vezes o retrato deste peso existencial que o escritor Dostoiévski transmite de seu âmago e de sua vida espiritual para as suas criações literárias. Aqui a luta se dá entre almas de renúncia e de busca de iluminação com o mais intenso espírito de rebelião irrestrita e deliberada, numa espécie de catarse e introspecção demonizada, tendo como resultado fatal o mais profundo desespero, tornando a descrição psíquica dostoievskiana um dos marcos da literatura universal, muito bem exemplificada na tempestade interior da personagem central de A Voz Subterrânea.  

 

Como nos diz Hamilton Nogueira : “A Voz Subterrânea é o único livro de Dostoiévski onde se nota a ausência de Deus. O seu personagem sente-se aniquilado em face da visão da própria iniquidade, e a consciência desse aniquilamento desperta-lhe a volúpia do caos.” Tal personagem nos dá a dimensão da grande ingenuidade dos reformadores e renovadores do mundo, pois a iniquidade seria uma força muito mais poderosa do que qualquer utopia de um mundo perfeito ou de transformação espiritual viável.

 

O que tal personagem subterrâneo nos diz é que este conhece bem a energia decaída e destruidora que vive nele e que também está presente em diversos lugares e estágios da existência neste nosso mundo terreno, e que, portanto, qualquer apelo ao interesse geral no sentido de transformação radical das tendências do mundo seria inútil. O espírito revolucionário seria, na verdade, um esforço anódino que Dostoiévski denunciaria indiretamente, apontando para uma pretensa moral científica de soluções simplistas, uma vez que Dostoiévski põe a nu toda a pretensão dos ideais socialistas no sentido de que estes ignoram completamente a complexidade explosiva e passional da psicologia humana, humanidade intratável e fora dos escaninhos de qualquer utopia social ou soteriológica.  

Contudo, a presença das verdades eternas na obra dostoievskiana é muito forte, intensa e constante, fonte de questões fundamentais e de uma potência existencial tanto esclarecedora como pondo dúvidas incontornáveis nos diversos trajetos que são traçados.  A divindade, no entanto, ressoa absurdamente no romance de Dostoiévski, e toda esta luminosidade sempre está inserida no plano limite de situações trágicas e de desesperos cortantes.

 

O tipo de despertar evangélico que se dá muitas vezes no romance dostoievskiano vem deste confronto com o sono da indiferença que precede tal iluminação, e o imperativo do amor sempre aparece na trama dostoievskiana, como bem nos lembra Kierkegaard, que pode ser exemplificada nas recomendações do staretz Zózimo aos monges da sua comunidade e de modo especial ao seu discípulo Aliocha.

 

Como nos diz Hamilton Nogueira, a respeito da personagem de Zózimo : “sua experiência religiosa se traduz em ousada e constante tentativa de conduzir quantos o cercam à conquista do mais puro espírito cristão.” E segue Hamilton na sua análise, nos dizendo de Aliocha, por sua vez : “O seu amor está dentro dos quadros do mais sublime amor cristão. É o resultado de uma vitória sobre si mesmo. É a afirmação de um espírito que se libertou completamente de todo o individualismo, de qualquer julgamento de caráter pessoal, para ser testemunho d`Aquele que é.”

 

Diante da iniquidade humana, o homem Dostoiévski não sucumbiu, sua perdição e rebelião foram temporárias, pois os sofrimentos dele não o levam a imprecar e amaldiçoar a sorte, não foram fonte de um tipo de revolta juvenil de lamúria por existir ou de chantagem contra a divindade, pois Ivan Karamazov, esta alma em rebelião geral e permanente, representa apenas uma fase da vida atribulada de Dostoiévski.

 

E, por sua vez, este autor se torna de fato universal, quando não apenas retrata e verifica a humilhação do homem diante de um mundo de dor e de situações absurdas, mas a partir de Recordações da Casa dos Mortos, dá uma visão ampla e profunda do sentido do mal, em seu aspecto transcendental, envolvendo as suas diversas e complexas faces.  

 

E o sentido da culpa, em Dostoiévski, por sua vez, passa de seu caráter falsamente individual para uma ideia universal de culpa muito bem exemplificada na ideia de pecado original, e temos, portanto, como nos diz Hamilton Nogueira, que : “é precisamente na aceitação da culpa universal que está a essência do pensamento dostoievskiano, pensamento que se transforma em ação, que enfrenta os mistérios mais profundos dos nossos destinos, e da contemplação deles traz alguma luz, traz uma solução, aponta-nos um itinerário.”

 

E uma das características mais curiosas da obra dostoievskiana é a de que as verdades fundamentais dadas pelo escritor se dá através de suas personagens mais simples, e não das mais cultas, que podem ser tipos como os santos ou os camponeses, e no extremo de tudo podem ser ainda os loucos, os ignorantes e por fim os pecadores.

 

Por conseguinte, temos o louco Kirilov, este como a personagem que se abrasa em face da figura sublime de Cristo, Marmeladov, bêbado, que se vê como distante e indigno do reino dos Céus, sendo este que, no entanto, passa a pregar a caridade, o staretz Zózimo, uma espécie de homem santo, nos dando a visão do sentido místico do universo, e Makário Ivanovitch, o camponês, por fim, como homem do povo, expondo com belos pensamentos a importância e a força real da oração.

 

Por fim, como nos diz Hamilton Nogueira : “Em Dostoiévski, como autêntico cristão, o sofrimento não é apenas uma resultante do pecado original, mas da culpa de todos. É somente assumindo essa culpabilidade total e lançando no coração dos homens as sementes do amor, que poderemos conquistar a nossa morada na cidade santa.”
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com 

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