Romance Os Demônios ganha caráter panfletário e se ergue na concepção dialética da História
O romance “Os Demônios” de Fiódor Dostoiévski foi escrito inspirado num acontecimento real na Rússia do século XIX. O caso que inspirou o romance foi o do assassinato do estudante I.I. Ivanov, no dia 21 de novembro de 1869, por membros da organização política clandestina Justiça Sumária do Povo (Naródnaia Rasprava), sob o comando de S.G.Nietcháiev.
Dostoiévski tomou conhecimento deste evento pela imprensa, e este evento provocou grande comoção na Rússia. Foi um evento que provocou discussão na Rússia e na Europa Ocidental. O julgamento foi acompanhado por Dostoiévski, na imprensa, que ficou bem interessado no caso, e o processo todo se deu em 1871, sob os cinco integrantes da organização.
Os movimentos populistas na Rússia se disseminaram entre os anos sessenta e setenta do século XIX, com o desenvolvimento de células de diferentes matizes ideológicos, com algumas destas células indo para a atividade terrorista contra a administração russa e o próprio tzar.
No estudo atento que Dostoiévski fez sobre a Justiça Sumária do Povo, a figura de Nietcháiev, chefe da organização, inspirou o escritor a criar o personagem de Piotr Stiepánovitch Vierkhoviénski, em que na escrita do romance de Os Demônios, temos toda a análise que Dostoiévski fez das circunstâncias minuciosas do crime, em seus métodos de organização, na propaganda e nos princípios ideológicos da sociedade.
A Justiça Sumária do Povo visava derrubar o poder do Estado, a religião e seus símbolos, as instituições sociais, as bases morais da sociedade, a família, os valores morais da sociedade e as tradições consolidadas da Rússia. Nietcháiev travou conhecimento com Bakúnin, e recebe deste a missão de organizar na Rússia uma organização revolucionária para divulgar as ideias de Bakúnin.
Os Demônios se configurou como um romance que funcionou como um panfleto, pois não temos aqui um exercício estético de manifestação da escrita, mas um trabalho acidentado como é a escrita de Dostoiévski, sem uma preocupação com certo beletrismo ou de construir um romance belo em estilo.
Dostoiévski chega a dizer a seu amigo Nikolai Strákhov, em que diz estar muito “esperançoso, no aspecto tendencioso, não no estético, quero enunciar algumas ideias, ainda que isso redunde na ruína de minha condição artística. Contudo, sinto-me envolvido pelo que tenho acumulado na mente e no coração, que isso acabe em panfleto, mas hei de me manifestar … Os niilistas e ocidentalistas exigem a chicotada definitiva”.
Em relação aos acontecimentos que envolveram o assassinato do estudante, Dostoiévski mergulha em matérias de jornais, antecedentes dos membros do quinteto, protocolos judiciais, e tem-se neste material uma atualidade que servirá de base para o enredo do romance.
O romance Os Demônios ganha este caráter panfletário e se ergue na concepção dialética da História, e Dostoiévski se coloca como um autor que é um cronista, pois o romancista aqui coloca um estatuto de realidade concreta para a sua narrativa.
O narrador que atua como cronista aqui deixa seu caráter onisciente e trabalha com a participação nos acontecimentos que vive e presencia, e o tempo corrido, o que vem depois, e fundindo o antes e o agora, num movimento de pêndulo. Portanto, aqui cai a infalibilidade do autor onisciente. Esta modernidade de narrativa não foi percebida por muitos críticos ao abordar Os Demônios.
As vicissitudes históricas são levantadas por Dostoiévski em seu romance Os Demônios, e aqui temos a concepção dialética da História. O pensamento da sociedade da época em que se vive é trabalhada pelo cronista, sua evolução e os elos que juntam passado, presente e futuro. O narrador que é cronista tem esta função de autor secundário, alguém que tem proximidade com os acontecimentos, ao contrário do narrador onisciente, que é o autor primário, que se refugia em sua infalibilidade.
Povoado por indivíduos sem ética e sem cultura, as ações de Os Demônios se dão como uma mutação de ideais de liberdade em atos envolvendo horror, morte e destruição. Aqui temos grandes ideais sendo manipulados e construindo situações de hipocrisia e farsa. Farsa esta que vem, muitas vezes, sob a forma de paródia. Piotr Stiepánovitch se coloca como um vigarista e não como um socialista. As ideias de liberdade, em meio a este ambiente de conflagração ganha matizes de moedas de troca e manipulação. Com farsantes e vendilhões de liberalismo. O simulacro e a caricatura aqui dão as cartas.
A impostura é produzida por indivíduos possuídos pelo desejo de poder para exercer o poder sem outra função, e de estabelecer e manter este poder, obliterando valores morais, avançando sobre a estrutura organizada e passando dos limites estabelecidos pelo poder vigente, e isto numa luta revolucionária que se expande sob a forma de uma degeneração ideológica.
Chigalióv pensa em uma sociedade do futuro como uma parcela menor que domina uma maioria da população que passa por uma despersonalização, a massa inconsciente que é uma manada. Chátov concebe a ideia de um Deus que atua como povo, um povo escolhido, que vem em primeiro lugar em relação aos outros povos. Aqui Chátov lembra dos aspectos do nacionalismo russo. E temos um Kiríllov que anuncia um “novo homem” que é o super-homem de Nietzsche.
A destruição de princípios éticos nas ações políticas perpetradas por indivíduos que tentam tomar o poder tem como consequência a destruição de um humanismo autêntico, em que a ação política se funda num clima de pavor e de mortes. A liberdade individual acaba sendo subsumida em fronteiras do espectro ideológico que ficam borradas e colocam posições antagônicas num mesmo diapasão. Os Demônios é um romance que tem uma amplitude histórica e que envolve diversos matizes ideológicos.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.