Artistas e produtores se articulam contra intenção do governo federal no espaço cultural que foi dos mais importantes do Estado
A frase que dá título a esse texto foi pronunciada pela deputada estadual Iriny Lopes (PT) durante audiência pública da Câmara de Vitória (CMV) e reflete o sentimento manifestado por diversos artistas e produtores culturais desde essa quinta-feira (30) diante do anúncio de que o Centro Cultural Carmélia Maria de Souza, localizado no bairro Mário Cypreste, seria transformado num armazém de café e outros produtos.
A proposta vem sendo articulada pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que quer transferir para o local os produtos que são armazenados nos galpões do IBC em Jardim da Penha, que devem ser levados a leilão num pacote de privatizações do governo federal.
Criado pelo governo estadual de Gerson Camata (1983-1986), o Centro Cultural Carmélia M. de Souza foi um dos espaços culturais mais importantes do Espírito Santo nos anos 80 e 90, contando com cinema, biblioteca, galerias de arte e um teatro que é lembrado pelos artistas como o melhor de sua época.
Seu nome homenageia a jornalista e escritora Carmélia de Souza, considera uma das cronistas mais importantes da história do Espírito Santo. De propriedade da Superintendência de Patrimônio da União (SPU), o espaço estava cedido para o Governo do Estado, que abriga no local a TV Educativa do Estado (TVE), e para a Prefeitura de Vitória, que não tem feito uso constante do local desde 2013.
O secretário de Cultura de Vitória, Francisco Grijó, se declarou surpreso com o anúncio da transformação do espaço em um armazém. Ele apontou que as obras de restauro do espaço para que voltasse a funcionar como Centro Cultural eram estimadas em cerca de R$ 12 milhões, ação que não foi levada adiante por falta de recursos da prefeitura.
Grijó contou que o local recentemente foi pleiteado pela Liga Independente das Escolas de Samba do Grupo Especial (Liesge), para que fosse transformada na Cidade do Samba, abrigando espaços ligados ao carnaval, dada a amplitude do espaço e a proximidade com o Sambão do Povo. A proposta foi parcialmente acolhida pela prefeitura, que propôs o uso da parte externa para atividades das escolas de samba junto à restauração do Centro Cultural com a reforma do teatro e outros espaços.
A secretaria e a liga das escolas de samba chegaram a se reunir com a atual gestão estadual da SPU para discutir o uso do espaço, sendo que a União se interessou com a possibilidade de utilizar o espaço para atividades de startups, empresas ligadas à inovação. Porém, o projeto nunca foi adiante.
Agora, com o martelo aparentemente batido para o leilão dos galpões do IBC, o futuro do Carmélia se vê ameaçado e justamente sob argumento de que o espaço não é utilizado. O presidente do Conselho de Políticas Culturais de Vitória, Sebastião Ribeiro Filho, aponta que o jogo de empurra entre Governo do Estado e PMV sem uma ocupação definitiva colocou o espaço numa situação agora delicada. A gestão do imóvel foi repassado pelo governo de Paulo Hartung para a prefeitura na primeira gestão de João Coser (PT).
“Se Paulo Hartung tivesse consolidado o Carmélia como espaço cultural do Estado, por meio do convênio com a União, e mesmo assim tivesse repassado para Vitória por convênio, para que o município administrasse, ele não poderia ser extinto como espaço cultural, sem aval da Assembleia Legislativa. Mas, ao se ‘livrar’ do Carmélia, o ex-governador estava se eximindo de buscar recursos para um projeto de reforma e manutenção do Centro Cultural”, afirmou Sebastião, lembrando que o Artigo 181 da Constituição Estadual prevê que espaços públicos culturais só poderiam ser extintos por forma de lei, com aprovação do poder legislativo.
Na audiência pública da Câmara Municipal, que tratou de imóveis que estão planejados para irem a leilão pela SPU, o advogado e gestor público Marcelo de Oliveira também chamou a atenção que mesmo sendo propriedade da União, constitucionalmente é papel do município definir o tipo de uso dos espaços urbanos. Segundo argumentos, o caso da privatização dos bens públicos também contraria o Estatuto das Cidades, pois estão sendo levados adiante nos bastidores sem nenhum tipo de consulta aos moradores do entorno e da cidade.
Não só o Carmélia, afetado por tabela pelo leilão, mas também dois dos principais espaços que o governo federal pretende vender, que são os Galpões do IBC e o campo de futebol que pertenceu ao Santa Cruz Futebol Clube, em Santa Lúcia, provocaram reações da sociedade civil e por tabela da classe política, mais atenta diante do ano eleitoral.
Tanto forças à esquerda como à direita, incluindo políticos, líderes comunitários e grupos ligados à cultura, esporte e urbanismo, já ligaram o alerta diante dos leilões. A ideia de que os espaços sejam simplesmente cedidos à iniciativa privada parece não agradar a maioria. Entra em pauta o direito à cidade, com a oferta de espaços públicos para cultura, lazer e entretenimento, em detrimento da cessão para mais empreendimentos privados sem um diálogo com as comunidades do entorno e a sociedade em geral.
Mas não vai ser na esfera municipal que alguma decisão será tomada. Há dois caminhos: a judicialização dos processos para suspensão ou cancelamento dos leilões e a pressão política em Brasília, mobilizando também a bancada federal no Congresso Nacional. E em meio a tudo isso, o aumento da pressão popular a nível local, visibilizando a questão e somando forças para o embate com o governo federal sobre o tema.
Embalados pelas articulações recentes em torno da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, os trabalhadores e ativistas da cultura já iniciaram sua mobilizações para tentar reverter a situação do Centro Cultural Carmélia e, finalmente, revitalizá-lo e colocá-lo novamente para uso para atividades culturais, bandeira que vem sendo levantada ao longo de mais de uma década. Em reuniões, chegou-se a levantar a necessidade de iniciar um processo para tombamento do espaço como patrimônio cultural, que poderia garantir maior proteção para o imóvel.
Depois de uma reunião de emergência, deliberaram um grupo para estudar ações jurídicas, outra para atividades de comunicação, e mais um para a realização de um ato político em frente ao Carmélia, previsto para a próxima terça-feira (4).
A proposta inclui mobilizar os moradores do entorno do Centro Cultural, cuja ocupação além de gerar alternativas de cultura, formação e entretenimento, poderia contribuir para a circulação de pessoas, geração de renda e aumento da segurança na região. A transformação em armazém também implicaria o aumento do fluxo de caminhões, que já é um problema em Jardim da Penha e poderia aumentar em um entorno sobrecarregado pela presença da rodoviária municipal e circulação de ônibus.