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Efeito do neorrealismo no cinema italiano e do mundo todo é perene

O ano de 1945 marca o início do neorrealismo italiano. E havia, neste momento, na crítica cinematográfica, um certo lamento de ter o cinema optado pelo caminho de Meliès ao invés dos Lumière. A missão falhara, até então, ao deixar de situar o cinema pelo aprendizado dos Lumière, na qual estava disseminada a realidade, ao invés da fantasia de Meliès.
 
A superação do paradigma Meliès pelo paradigma dos Lumière era uma das grandes questões no nascedouro do neorrealismo italiano, o que representava a transição para o caráter científico da objetividade documentária do filme, saindo da influência de Meliès, que era o cinema de caráter fabuloso e, para alguns, artificial.
 
Esta disputa entre um cinema de entretenimento, de fábula, com artifícios ficcionais e maquinais de ilusão, e um cinema com uma orientação politizada, documental, que pretendia fazer da realidade factual o meio da câmera e da montagem, ao contrário de uma ficção pura de enlevo metafísico ou puramente estético, talvez seja o grande marco de toda a história do cinema, pois, em grande parte de toda a evolução do cinema, em geral, transitou esta herança dupla entre Meliès e os Lumière.
 
O neorrealismo italiano: como tudo começou
 
E, a partir do pós-guerra, com a iminente eclosão do neorrealismo italiano, a questão de um cinema de técnica documental, uma arte de cinema realista, como registro imediato do real, com fundamento no trabalho da câmera, numa captação analítica, deixando para trás uma abordagem metafórica ou metafísica, se tornou uma necessidade, e o neorrealismo italiano refletiu este novo momento, ficava algo apontando para além do cinema de pura diversão, agora com uma produção de filmes baseados na vida social. O realismo de fotogramas irromperia no cenário do cinema mundial, e agora com uma inovação de conteúdo no sentido moral, político e histórico, fundamentando a visão social e seus dilemas cotidianos.
 
O homem moderno, com seus problemas reais, aparece na película, e a câmera se torna o ente manipulador deste conteúdo engajado, com a montagem refletindo, neste momento, o sentido de todo um trabalho de câmera atenta e documental. Aqui se tem a vida real, cotidiana, em limites precisos de espaço e de tempo, pois é a imagem do homem com seus problemas reais e concretos, em toda a sua luta secular de uma vida civil, em meio ao progresso técnico e seus dilemas morais, produzindo, com isto, uma possível universalidade humana na representação realístico-fílmica, meio expressivo coletivo e democrático, com todas as nuances sociais do mundo cotidiano.
 
Os diretores
 
Os diretores italianos da corrente denominada “neorrealismo” souberam demonstrar, portanto, com os fatos da vida, que têm presente, como norma eficaz, aquele espírito ou alma ou essência da arte cinematográfica, no caráter analítico do fotograma, em uma síntese-montagem com um sentido fílmico bem definido, como diretores extremamente sensíveis à modernidade de sua própria época. No cinema, realista ou neorrealista, a forma é o próprio conteúdo, daí a palavra documental servir bem a este propósito conceitual e real, empírico, de fazer cinema.
 
Com a exibição de “Roma, Cidade Aberta”, em setembro de 1945, o cinema passa a ocupar um papel de destaque na cultura italiana do pós-guerra. O protagonista desse renascimento cinematográfico é o neorrealismo. E, com a queda do fascismo na Itália, o país saía moralmente renovado dos acontecimentos de que fora palco entre setembro de 1943 e abril de 1945.
 
Apesar do país se encontrar em ruínas, a tomada de consciência das massas populares parecia ser a garantia para o futuro democrático da nação. E os homens de cultura, neste novo contexto, se colocavam a necessidade de registrar o presente, e isso significava registrar a guerra e a luta de libertação, e de fazer reviver o espírito de coletividade que havia animado o povo italiano.
 
“Roma, Cidade Aberta”, de Rossellini, por exemplo, marco inicial do neorrealismo, foi filmado após a libertação da cidade. Personificados em Don Pietro e Manfredi, o padre católico e o engenheiro comunista, em Pina e Marina, respectivamente símbolos da Itália popular e da Itália corrompida pelo fascismo, os vários componentes da sociedade italiana surgiam na tela, no embate entre a colaboração com o nazismo e a solidariedade das massas, esta que, por sua vez, teve um papel na Resistência italiana,  fundamental para libertar a Itália.
 
Em seguida, novos temas apareceram, o momento da guerra começava a virar passado, e temas da “questão meridional” passaram à baila, como a reforma agrária, a crise do desemprego e subemprego nas áreas urbanas, a emigração, temas candentes, dos quais o neorrealismo se ocupará em filmes como “Ladrões de Bicicletas” de Vittorio De Sica, e “La Terra Trema” de Luchino Visconti.
 
No entanto, a temática daqueles anos que marcaram a história da Itália ainda será importante pelos próximos anos. Pois, no caso do cinema italiano, falar do ontem significa procurar entender melhor o hoje. E se o neorrealismo é um termo obrigatório, como o é, em geral, em quase todo o cinema italiano hodierno, em suas glórias e abominações, é então o neorrealismo a base crítica e produtiva da cinematografia italiana desde o pós-guerra. Portanto, dito isto, podemos entender que, também, os anos de fascismo e da luta antifascista continuam sendo uma referência na Itália até hoje, pois é neste ponto da História que está a base da vida política atual deste país.
 
Rossellini foi o marco ideal do novo cinema italiano, mas o neorrealismo também contou, em certas proporções, com nomes como Antonioni e Emmer, pois estes estavam ligados àquele momento do cinema italiano. Se, ao realizar seu primeiro longa-metragem, Antonioni já não pode ser considerado um cineasta neorrealista, não podemos esquecer que, como documentarista, o foi, embora Antonioni tenha sido mais reconhecido com longa-metragens do que como um documentarista. Neste ponto, Luciano Emmer obteve mais êxito.
 
O que une estes três diretores (Rossellini, Antonioni e Emmer), em sua fase de documentaristas, é um novo modo de olhar, um novo modo de conceber a criação. Na senda ficcional, se Emmer terá no enredo seu rumo, Antonioni e Rossellini irão, por sua vez, se despojar de tudo o que é secundário na concepção de um filme, em busca de uma linguagem cinematográfica capaz de reinventar seus códigos a cada obra.
 
Rossellini, então, terá seu cinema como uma espécie de “invenção da verdade”, numa passagem do “imaginário para o real”, com sua ficção que nascia da observação das coisas. Em “Roma, Cidade Aberta”, a luta clandestina e a ocupação alemã encontraram uma imagem que tinha o sentido de se colocar um espaço de relações capaz de reformar o encadeamento dos tempos, devolvendo contemporaneidade aos fatos. Desse modo, Rossellini enfrentava, se opondo, o procedimento moral ou ideológico de um Zavattini, por exemplo, dando prioridade ao expressivo, evitando a redução imprudente do neorrealismo como mera peça de ideologia.
 
Conceito e história
 
A definição do que é o neorrealismo italiano e de sua duração na história do cinema é de grande dificuldade, pois existem diversas visões destes dois temas sobre o movimento em questão. Podemos dizer, quando se fala dos diretores representativos, temos, certamente, a tríade Rossellini, De Sica e Visconti, havendo muita discordância entre os outros nomes possíveis. E a duração passa de 1945, com “Roma, Cidade Aberta”, e termina em “Rocco e Seus Irmãos” em 1960, mas esta é só uma das interpretações, pois. A crítica cinematográfica neste assunto, portanto, não tem um consenso ou uma definição peremptória sobre o que é ou quanto durou o neorrealismo italiano.
 
Porém, mais do que uma escola ou uma técnica cinematográfica, inicialmente, o neorrealismo foi um ato de otimismo coletivo e revolucionário, tanto isso é verdade que não atingia somente o mundo do cinema, mas quase toda a cultura italiana do pós-guerra. Foi um impulso humano e moral, mais do que uma orientação estética, pois representava o momento histórico da redescoberta da Itália como pátria comum, de uma Itália que nascia sob o signo da liberdade, momento que foi o ponto de partida do neorrealismo.
 
Estilo neorrealista italiano
 
E, para além desta postura moral predominante, de conteúdo histórico evidente e com veia política, na visão de estilo, por sua vez, podemos afirmar que o neorrealismo italiano tem certas características que são a narração despojada dos acontecimentos, filmagens em cenários reais, fora dos estúdios, e interpretações confiadas, frequentemente, a atores anônimos. Embora, novamente, o sentido moral e histórico, como realidade social e política, predominem, e são um verdadeiro estudo do povo italiano no curso imediato do pós-guerra. Segundo Carlo Lizzani: “o movimento geral de um grupo de artistas no sentido da descoberta humana e espiritual de nosso país.”
 
O neorrealismo italiano, portanto, é uma descoberta histórica, política, uma orientação moral da libertação italiana, um movimento difuso, que não é de fácil definição e mapeamento, que tem alguns ícones como Rossellini, que possui, também, um compromisso com a realidade social, um vulto do cinema que ampliou o escopo do fazer cinema, pois colocou valores mais documentais sobre algo naturalmente produzido no sentido de puro entretenimento, como é a arte do cinema. E o efeito do neorrealismo no cinema italiano e do mundo todo é perene, sendo um dos marcos revolucionários e de transformação de paradigmas pelos quais passou a história do cinema.
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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