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Emily Dickinson ??? Poemas Escolhidos

Não reconhecida em vida, a posteridade foi generosa com a poesia de Emily Dickinson, com uma permanência de crítica e público na História, e que figura ao lado de Walt Whitman, como um clássico da poesia norte-americana. Emily, com poemas que, literalmente, eram costurados como um “patchwork”, era como uma alegórica colcha de retalhos,  e isso num estilo ricamente lírico na sua poesia, num conjunto de produção poética que possuía muitos poemas curtos, dentre os quais figuravam os chamados esboços rascunhados, como se a poesia de Emily Dickinson fizesse parte de uma produção artesanal, caseira, longe ainda da dimensão histórica que esta poesia viria a conquistar.

E aqui, neste aspecto artesanal da poesia de Emily Dickinson, é que surge um tipo de mitologia em torno da poesia e da figura da escritora, retratada, por sua vez, como a reclusa de Amherst. E do ponto de vista do estilo poético, tal escrita era capaz de realizar um máximo de potência com o mínimo de sons, com o uso corriqueiro de versos curtos, juntando no mesmo poema virtuosismo e a simplicidade de uma canção popular.

E temos ainda os travessões que ela criou como um tipo de sinal gráfico até então inexistente em língua inglesa: a disjunção, um traço curto (—). A disjunção, então, tem a função, como um dos principais recursos estilísticos de sua escrita, de destacar uma palavra ou de grifar uma expressão, marcar pausas de leitura ou dicção, alterar o ritmo de alguns versos, podendo separar fragmentos de frases, ou ainda expressar continuidade (ou descontinuidade) de uma ideia, o que também explica ou marca algo que veio primeiro no poema do que vem a seguir. Mas, mesmo com tais marcas de pontuação originalíssimas, e também devido a isto, mais de um quinto dos manuscritos da autora não subsistiram, e muitas das transcrições de terceiros tentaram inadvertidamente regularizar a pontuação e outros aspectos gráficos e prosódicos de sua escrita.

A comparação entre Emily Dickinson e Walt Whitman tende, às vezes, a fazer uma equivalência entre tais poetas, o que não diz muito da diferença abissal de estilo entre ambos, sendo Emily intitulada de modo capenga como o Whitman de saias. Mesmo que os dois escritores tenham vivido quase na mesma época, eram diversos em estilo, e Whitman teve êxito literário ainda vivo, ao contrário de Emily, que passou discretamente pelos seus contemporâneos. Emily, quanto ao estilo, era contida e hermética, e Whitman, por sua vez, tinha estro derramado, num caminho poético transbordante, com o som de Emily suave e o de Whitman exultante. Emily, por sua vez, teve o objetivo de enviar uma carta ao mundo, e sua poesia, além de artesanal, tinha a feição de uma trama epistolar, de dimensões comedidas no som e no estilo, ao passo que Whitman se dirigia aos jovens do futuro com um ímpeto messiânico, com sua trombeta de poeta-profeta que se dizia “Full of Life Now” (Pleno de vida agora).

Emily, às escondidas, pavimentou um novo caminho para a poesia, numa direção oposta em relação a Whitman, e que, assim como a poesia dele, teria poder de fazer surgir uma nova América, com uma literatura independente e de alcance universal. Com seu material caseiro, numa arca reunindo todo um trabalho de artesanato inédito, Emily ergue na sua poesia um modo de escrita de moldes métricos muito simples, num estilo de poesia mais puro e reto, sem derramamento, numa linguagem condensada com expressão despojada, e tão revolucionária quanto o pretenso messianismo de Whitman.

POEMAS :

SEM TÍTULO : O poema marítimo, que tem o mar do coração, é este que se abre em melopeia ou em tormenta, e o vento do verso de Emily nos dá isto: “O coração tem bordas estreitas/E, feito o mar, se mensura/Por um poderoso baixo contínuo/E monotonia azul/Até que um furacão o seccione”. A ruptura e a fragmentação de tal coração é este que : “Aprende em convulsões/Que a calmaria é tão-só muralha/De intocada gaze:/A pressão de um instante a destrói,/Um questionamento a esgarça.”. O vento que colide em tais muros de contenção rompem a fronteira de proteção de um coração que é agora pressionado pelas convulsões de dentro, e a de fora, a do mundo.

SEM TÍTULO : A morte é evocada em uma poesia que é contida, nas suas exéquias, e então o poema vem assim: “Senti exéquias em meu cérebro/E, agitando-se, carpideiras/A pisar o solo, a pisar/Até que o senso pareceu irromper.”. E a descrição ressoa como um tambor, a poesia tenta traduzir a própria agonia da qual sente a pressão, no que Emily em sua alma sente como chumbo a ranger, no que temos: “o tambor/Passou a ressoar e pensei/Que a minha mente entrava em torpor./Ouvi então erguerem um esquife/E cruzarem a minha alma/Com as mesmas botas de chumbo a ranger;”. E então a queda, sem mais: “E logo uma tábua na razão quebrou-se/E fui caindo, caindo,”.

SEM TÍTULO : O poema mistura Charlotte Brönte e a inspiração da migração das aves, no que o estro é formidável, ao verso revolucionário de uma poesia nova: “Toda coberta de insidioso musgo,/De espinheiros, toda inçada,/A pequena gaiola de Currer Bell*/Na tranquila Hawort** jaz./Essa ave ao ver que as outras,/Quando a geada se fez cortante,/Migravam para novas latitudes,/Imitou-as simplesmente,/Mas diverso foi seu retorno;/Em Yorkshire, embora verdes as colinas,/A cotovia não se acha/Em todos os ninhos./Pois que em seu vaguear o soube,”. O movimento de ir e retornar, e a angústia que atinge a flor mortal, eis que o poema é a migração da escrita no voo de ave que tudo vê com as asas que lhe elevam: “A imensa extasiada angústia/Com que ela atingiu a flor mortal.”.

SEM TÍTULO : A Beleza e a Verdade se juntam e se separam no mesmo poema, e Emily está plenamente consciente de ambas quando nos dá estes versos: “Morri pela beleza, mas estava apenas/No sepulcro acomodada/Quando alguém que pela verdade morrera/Foi posto na tumba ao lado./Perguntou-me, baixinho, o que me matara:/“A Beleza”, respondi./“A mim, a Verdade – são ambas a mesma coisa,/Somos irmãos.”. Por ambas a poesia vê a morte, a Verdade e a Beleza, como irmãs de um mesmo caminho, e de que a poesia se nutre como vida da qual se morre.

SEM TÍTULO : O poema é um grilo, ao fim, e as claves somem, a melodia se ausenta, e a beleza se une à natureza, e o grilo termina o poema em sua elegia, no que temos: “Tem muitas claves a terra./Lá, onde a melodia se ausenta,/Fica a desconhecida península./A beleza é fruto da Natureza./Mas, testemunha de seu solo/E testemunha de seu mar,/O grilo é a maior elegia/Que a Natureza me faz.”. A Natureza, enfim, é o poema em seu estado original.

POEMAS :

SEM TÍTULO

O coração tem bordas estreitas

E, feito o mar, se mensura

Por um poderoso baixo contínuo

E monotonia azul

 

Até que um furacão o seccione

E, enquanto descobre

Seu insuficiente espaço,

Aprende em convulsões

 

Que a calmaria é tão-só muralha

De intocada gaze:

A pressão de um instante a destrói,

Um questionamento a esgarça.

SEM TÍTULO

Senti exéquias em meu cérebro

E, agitando-se, carpideiras

A pisar o solo, a pisar

Até que o senso pareceu irromper.

 

E, quando todas se aquietaram,

De um rito, o tambor

Passou a ressoar e pensei

Que a minha mente entrava em torpor.

 

Ouvi então erguerem um esquife

E cruzarem a minha alma

Com as mesmas botas de chumbo a ranger;

O espaço agora começou a soar

 

Como se os céus um sino fossem

E o ser nada mais que um ouvido,

E eu e o silêncio, uma estranha raça

Aniquilada e solitária, aqui;

 

E logo uma tábua na razão quebrou-se

E fui caindo, caindo,

E, na queda, atingia mundos

E acabei por saber – então –

SEM TÍTULO

Toda coberta de insidioso musgo,

De espinheiros, toda inçada,

A pequena gaiola de Currer Bell*

Na tranquila Hawort** jaz.

 

Essa ave ao ver que as outras,

Quando a geada se fez cortante,

Migravam para novas latitudes,

Imitou-as simplesmente,

 

Mas diverso foi seu retorno;

Em Yorkshire, embora verdes as colinas,

A cotovia não se acha

Em todos os ninhos.

 

Pois que em seu vaguear o soube,

Getsêmani pode contar

A imensa extasiada angústia

Com que ela atingiu a flor mortal.

 

Suaves caem os sons do Éden

Em seu ouvido absorto –

Ó que entardecer no céu,

Quando Brontë lá chegou!

 

*Pseudônimo de Charlotte Brontë

** Vilarejo inglês, onde as irmãs Brontë produziram a sua obra.

 SEM TÍTULO

Morri pela beleza, mas estava apenas

No sepulcro acomodada

Quando alguém que pela verdade morrera

Foi posto na tumba ao lado.

 

Perguntou-me, baixinho, o que me matara:

“A Beleza”, respondi.

“A mim, a Verdade – são ambas a mesma coisa,

Somos irmãos.”

 

E assim, como parentes que certa noite se encontram,

Conversamos de jazigo a jazigo,

Até que o musgo alcançou nossos lábios

E cobriu os nossos nomes.

SEM TÍTULO

Tem muitas claves a terra.

Lá, onde a melodia se ausenta,

Fica a desconhecida península.

A beleza é fruto da Natureza.

 

Mas, testemunha de seu solo

E testemunha de seu mar,

O grilo é a maior elegia

Que a Natureza me faz.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog; http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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