Organização do Raiar da Liberdade solicitou para a Secult registro da festa como patrimônio cultural imaterial capixaba
A festa Raiar da Liberdade pode, em breve, se tornar patrimônio imaterial do Espírito Santo. Foi encaminhada para a Secretaria Estadual de Cultura (Secult) a solicitação desse registro. O festejo acontece há 135 anos na comunidade quilombola de Monte Alegre, no distrito de Pacotuba, em Cachoeiro de Itapemirim, sul do Estado. “Estamos na expectativa da celeridade do processo”, diz o co-organizador da festa e membro da Associação de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Cachoeirense, Genildo Coelho.
A elaboração do inventário para dar entrada no registro de patrimônio imaterial foi feito com recursos do Edital 12 da Secult, de Seleção de Projetos e Concessão de Prêmio para Valorização dos Patrimônios Imateriais Reconhecidos e Registrados no Estado do Espírito Santo, de 2020. Na metodologia foram utilizados formulários do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), metodologia adotada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), para o estudo e o reconhecimento das referências culturais brasileiras.
Os formulários foram preenchidos, segundo Genildo, “a partir das vivências dos legítimos portadores do patrimônio, que são os mestres”, uma vez que os materiais do Iphan e da Academia costumam ser “genéricos”. Assim, buscou-se valorizar, nos mestres, “o que é contado por eles, o que compreendem, o que acreditam ser importante”. A documentação, agora, será encaminhada para o Conselho Estadual de Cultura, sendo direcionada para a Câmara de Patrimônio Imaterial, que irá fazer um parecer a ser apreciado pelo restante do colegiado. De acordo com Genildo, o Conselho pode fazer alguma diligência, como querer conhecer a festa e pedir outros tipos de documentos. Com o reconhecimento, afirma, espera-se a criação de uma política de fomento e preservação do patrimônio imaterial.
Conforme consta no pedido de registro, o Raiar da Liberdade “marcou, e ainda marca, a conquista de sua liberdade por parte dos escravizados. Conquista que custou muito sangue de seus antepassados, mas que ainda custa o sangue de muitos jovens, mulheres e homens negros, que seguem sofrendo as consequências de uma sociedade que ainda é escravocrata, patriarcal e que possui uma elite que busca a todo o custo a manutenção de seus privilégios”. Diz ainda que “ao reconhecer essa festa como importante referência cultural para o Espírito Santo, o Conselho Estadual de Cultura estará contribuindo para sua manutenção por ainda mais tempo e também ampliando seu alcance enquanto elemento identitário do povo negro capixaba”.
Genildo destaca que hoje existe, por meio dos editais, uma política de financiamento “que não é democrática”. “Muitos mestres não sabem escrever. Edital é só para um segmento, para quem tem um nível educacional que permite saber lidar com a burocracia do Estado”, diz. Para ele, a obtenção do registro de patrimônio imaterial por parte do Raiar da Liberdade pode abrir caminho para que outras festas consigam o mesmo, como as de São Sebastião, em Cachoeiro; a do Caboclo Bernardo, em Linhares; o Carnaval do Boi Pintadinho; e a festa de São Benedito das Piabas, em Conceição da Barra, todas essas três últimas no norte.
Os atrasos no cronograma dos editais da Secult, inclusive, prejudicaram a edição de 2022 da festa. Os editais de 2021 da Secult foram abertos somente no final do ano, com inscrições até meados de janeiro de 2022, havendo, depois, prorrogação até dois de fevereiro. De acordo com os novos prazos, o resultado deveria ter sido divulgado em 22 de abril, o que não aconteceu. O atraso na publicação do edital bem como de seu cronograma impossibilitou a obtenção do recurso para a festa.
A festividade tradicionalmente conta com a distribuição gratuita de feijoada para cerca de 1 mil pessoas, quantidade que teve que ser reduzida para cerca de 80. Desde que os editais foram lançados, a festa é contemplada com recursos, mas Genildo defende que o evento não pode depender disso e já na época defendeu o reconhecimento da festa como patrimônio imaterial. “Não acho certo uma festa de mais de 130 anos ter que esperar edital. Deveria ter um recurso disponível anualmente, o Estado tem que reconhecer a festa como patrimônio imaterial e investir”, criticou.
Genildo afirma que o Raiar da Liberdade não é uma festa cara, sendo pleiteado anualmente o valor de R$ 20 mil, que, apesar de ser um valor pequeno para a grandiosidade da festa, gera renda para os moradores de Monte Alegre. O dinheiro é utilizado para pagar o transporte dos grupos folclóricos que se apresentam no evento, pagar as cozinheiras que fazem a feijoada e comprar os ingredientes, já que muitos deles são produzidos na própria comunidade. Além disso, pessoas de diversos lugares, que participam da festa, consomem o artesanato feito na região.
Raiar da Liberdade
Cerca de 15 grupos folclóricos se apresentam anualmente no Raiar da Liberdade, em uma relação chamada de “compadrio”, pois eles marcam presença na festa uns dos outros, se visitam. Os grupos não se restringem aos de Cachoeiro de Itapemirim, abarcando também outros municípios do sul capixaba, como Muqui, Itapemirim, Presidente Kennedy, Alegre, Jerônimo Monteiro e Atílio Vivácqua.
Genildo, que é pesquisador da área do patrimônio imaterial, afirma que o Raiar da Liberdade é uma festa que lembra o processo de luta do povo negro. “A gente comemora a vitória de uma revolução que começou no chão da senzala, é uma festa que acontece em uma comunidade onde foi formado um quilombo, organizado por negros que fugiram de fazendas da região”, conta.
Ele narra que, em 13 de maio de 1888, a notícia da abolição foi recebida via telégrafo, comunicada pelos fazendeiros aos escravos, que no mesmo dia foram para a praça da cidade, onde começaram a fazer seus batuques em frente à Câmara Municipal. O presidente da Casa de Leis tentou se apropriar da comemoração, tirar o protagonismo dos negros, distribuindo comida e bebida. Dias depois, sem emprego, comida, moradia e outros direitos, os negros voltaram para as fazendas, permanecendo no regime de escravidão.
A festa, então, passou a ser comemorada anualmente nas comunidades da região, mas hoje acontece somente em Monte Alegre e Vargem Alegre, também em Cachoeiro. Em Monte Alegre, a comemoração é liderada por Maria Laurinda Adão desde 1961, quando ela tinha 18 anos. Trata-se de um compromisso que passa de geração em geração. Seu trisavô, Negro Adão, que fundou a comunidade quilombola, foi quem deu prosseguimento à festa, ainda no século XIX, passando depois para os bisavós, avós e pais de Maria Laurinda, que destaca-se nacionalmente e internacionalmente como defensora da cultura negra e quilombola.
Além de ativista, Maria Laurinda é mestra de Caxambu, parteira, coveira e líder espiritual. Ela recebeu em 2008 o título de “Patrimônio Cultural do Brasil”, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Sua história também foi eternizada no documentário Todas as faces de Maria, em 2011.