Temos em Góngora grande parte do preciosismo imagético que reverbera a escola poética e artística barroca, pois no exagero da metáfora e com o cromatismo povoando as palavras num poema esteticamente intenso, temos um dos grandes escritores aqui do esplendor mais forte no qual viveu a literatura espanhola.
O poeta Góngora, por sua vez, diante de sua época e no contexto social e político de sua nação, agora incluindo a dominância do pensamento religioso, não escapará da influência da ideologia do Concílio de Trento, e sua poesia, quando for tematizar a vida religiosa e sua ideologia, lembrará de certas citações ou ideias bíblicas por excelência, uma vez que o poeta terá na sua produção de versos uma imagética que não estará alienada do que está a sua volta, mesmo com todo o seu formalismo.
Quando nós falamos do cromatismo, por exemplo, este carrega as palavras como um lume que vai enriquecer a cepa barroca com todo este incremento estético próprio deste movimento, que nunca se furtou de exibir uma exuberância que vai ao paroxismo de um exercício de fazer versos bonitos e elegantes, e isto define bem tanto o barroquismo como o que veio dele por Góngora, isto é, o gongorismo.
POEMAS
XLIV : Polifemo, que de sua boca era prodigioso fole, vem aqui no poema emitir seu som, no que temos : “Árbitro de montanha e praia austera,” (…) “A quantas canas agregou a cera/O prodigioso fole de sua boca;/A ninfa ouviu-os, e ser mais quisera/Breve flor,”. Mas a ninfa, já resoluta, quisera antes ser erva humilde, aqui diante do temor de Polifemo, no que vem a coda nos lembrar : “Que, do tronco recém, vide lasciva,/Morta de amor, e de temor não viva.”
XLV : Aqui temos o poema que descreve o enlaçamento da ninfa Galateia, e Ácis aqui, o moço, que logo será partido em pedaços pelo ciclope Polifemo, pelo cortante machado dos ciúmes, no que temos : “Mas – cristalinos pâmpanos seus braços –/O amor a enlaça, se o temor a gruda,/Ao infeliz olmeiro que pedaços/A segure dos ciúmes fará aguda./As cavernas, entanto, e os mais espaços,/Que preveniu aquela avena ruda,/O trovão de sua voz fulminou logo :/Referi-o, Piérides, vos rogo!”. E o que resta mais ao poeta é rogar, eis um último verso de piedade que aqui se derrama, pois.
XLVI : A descrição aqui é amorosa, e reúne partes em que a associação é rica, no que temos : ““Ó bela Galateia, mais suave/Que os cravos todos que truncou a aurora;” (…) “Igual em pompa ao pássaro que, grave,/Seu manto azul de tantos olhos doura/Quantas a celestial safira estrelas!/Ó tu, que incluis em duas as mais belas!”. Ao fim, no que temos os olhos, duas estrelas, antes sendo homenageada como bela Galateia, no barroquismo aqui já gongórico e elaborado metaforicamente, demandando forte interpretação.
LI : O ciclope filho de Netuno, este Júpiter do mar, aqui Polifemo como filho evoca seu poder para conquistar Galateia, e ele a chama, no que temos : ““Eu sou filho do Júpiter das ondas,/Mesmo pastor; se em teu desdém já aflora/Que o rei das grutas fundas e redondas/Em trono de cristal te abrace nora,/Polifemo te chama, não te escondas;/Que esposo tal admira a praia agora/Qual outro não viu Febo, mais robusto/Do preguiçoso Volga ao Indo adusto.” Aqui o poema descreve o contexto em que se dá o chamado, já diante do Volga, e rumando para o Indo.
LVII : A gruta aqui então serve de tábua de salvação a um genovês, no que temos : ““Tábua outra a um genovês foi minha gruta,/Para a pessoa sua e sua fazenda;” (…) “Luzente paga pela melhor fruta/Que em ervas se recline, em fios penda,/Colmilho do animal foi a que o Ganges/Viu sofrer muros e romper falanges :” Vindo de um naufrágio, o genovês agora que do marfim troca pela melhor fruta, eis o refúgio e a recompensa.
LVIII : Recompensa esta um arco gentil e uma aljava brunhida, no que temos : ““Arco, digo, gentil, brunhida aljava,/Obras ambas de artífice brioso,/E de rei de Malaca a deus de Java/Alto dom, tal me disse o hóspede aquoso.” (…) “Convicta a mãe, imita o filho airoso :/Serás a um tempo nestes horizontes/Vênus do mar, Cupido destes montes.”” E ao fim Vênus imita seu filho, do arco se fazendo como Cupido.
LIX : A voz de Polifemo é interrompida, no que temos : “Sua horrenda voz, não sua íntima dor,/Cabras aqui lhe interromperam,” (…) “A Baco ousaram atacar as plantas./Mas o pâmpano ao ver fero o pastor” (…) “Despediu ele, e tanta pedra a funda,/Que voz e pedras varam a hera funda.”. E então Polifemo ao ver pisoteado o pâmpano mais tenro, deu muitos brados, e sua funda lançou tantas pedras que rompeu o muro de heras atrás do qual estavam Ácis e Galateia.
LX : Agora os amantes assustados com a voz e as pedras de Polifemo, se separam dos abraços mais suaves, no que temos : “Dos nós, com tudo isso, mais suaves,/Os doces dois amantes desatados,/Por duros seixos, por espinhos graves/Solicitam o mar com pés alados;/Tal, redimindo de importunas aves/Incauto lavrador os seus semeados,/De lebres cópia dirimiu amiga/Que vário sexo uniu e um sulco abriga.” Os amantes procuram com pés alados o mar, e permanecem apartados entre si, também agora, um casal de lebres.
LXI : A fugitiva ninfa vê o feroz brutamontes correr para o mar, no que temos : “Vendo, o fero brutaz, com passo mudo/Correr ao mar a fugitiva neve” (…) “E o rapaz vendo, antigas faias, rudo,/Agita, quantas cioso trovão deve :/Tal, antes de que a opaca nuvem rompa,/Do raio avisa a fulminante trompa.” Ao fim, o trovão com sua fulminante trompa dá o aviso da queda.
LXII : Polifemo arranca violentamente a ponta maior da elevada rocha, no que temos : “Com violência arrancou ele infinita/A maior ponta de elevada roca,/Que ao jovem, sobre quem a precipita,/Urna é muita, pirâmide não pouca./Com lágrimas a ninfa solicita/As deidades do mar, que Ácis invoca :/Concorrem todas, e o penhasco duro/O sangue que espremeu, cristal foi puro.”. Lançada a rocha contra Ácis, enfim com lágrimas a ninfa apela às deidades do mar pelo seu amado.
LXIII : Os membros do moço estão aqui esmagados pela rocha fatal, no que temos : “Opressos tristemente os membros moços/Da fatal rocha vinda de mãos feias,/Os pés dos grandes vegetais mais grossos/Calçou o líquido aljôfar de suas veias.” (…) “A Dóris chega, que, com pranto pio,/Saudou-o genro, conclamou-o rio.”. Então, Dóris chama o moço de genro, esta que era mãe de Galateia, e lhe aclama como deus-rio.
POEMAS
XLIV
Árbitro de montanha e praia austera,
Alento deu, no píncaro da roca,
A quantas canas agregou a cera
O prodigioso fole de sua boca;
A ninfa ouviu-os, e ser mais quisera
Breve flor, erva humilde, terra pouca,
Que, do tronco recém, vide lasciva,
Morta de amor, e de temor não viva.
XLV
Mas – cristalinos pâmpanos seus braços –
O amor a enlaça, se o temor a gruda,
Ao infeliz olmeiro que pedaços
A segure dos ciúmes fará aguda.
As cavernas, entanto, e os mais espaços,
Que preveniu aquela avena ruda,
O trovão de sua voz fulminou logo :
Referi-o, Piérides, vos rogo!
XLVI
“Ó bela Galateia, mais suave
Que os cravos todos que truncou a aurora;
Branca mais do que as penas daquela ave
Que doce morre e que nas águas mora;
Igual em pompa ao pássaro que, grave,
Seu manto azul de tantos olhos doura
Quantas a celestial safira estrelas!
Ó tu, que incluis em duas as mais belas!
LI
“Eu sou filho do Júpiter das ondas,
Mesmo pastor; se em teu desdém já aflora
Que o rei das grutas fundas e redondas
Em trono de cristal te abrace nora,
Polifemo te chama, não te escondas;
Que esposo tal admira a praia agora
Qual outro não viu Febo, mais robusto
Do preguiçoso Volga ao Indo adusto.
VII
“Tábua outra a um genovês foi minha gruta,
Para a pessoa sua e sua fazenda;
Uma revigorada, a outra enxuta,
Relação do naufrágio fez-me horrenda.
Luzente paga pela melhor fruta
Que em ervas se recline, em fios penda,
Colmilho do animal foi a que o Ganges
Viu sofrer muros e romper falanges :
LVIII
“Arco, digo, gentil, brunhida aljava,
Obras ambas de artífice brioso,
E de rei de Malaca a deus de Java
Alto dom, tal me disse o hóspede aquoso.
Com este a mão, com aquela o ombro agrava;
Convicta a mãe, imita o filho airoso :
Serás a um tempo nestes horizontes
Vênus do mar, Cupido destes montes.”
LIX
Sua horrenda voz, não sua íntima dor,
Cabras aqui lhe interromperam, quantas,
Vagas o pé, sacrílegas o corno,
A Baco ousaram atacar as plantas.
Mas o pâmpano ao ver fero o pastor
Conculcado mais tenro, vozes tantas
Despediu ele, e tanta pedra a funda,
Que voz e pedras varam a hera funda.
LX
Dos nós, com tudo isso, mais suaves,
Os doces dois amantes desatados,
Por duros seixos, por espinhos graves
Solicitam o mar com pés alados;
Tal, redimindo de importunas aves
Incauto lavrador os seus semeados,
De lebres cópia dirimiu amiga
Que vário sexo uniu e um sulco abriga.
LXI
Vendo, o fero brutaz, com passo mudo
Correr ao mar a fugitiva neve
(Que, a vista igual, o líbico desnudo
Registra o campo de sua adarga breve),
E o rapaz vendo, antigas faias, rudo,
Agita, quantas cioso trovão deve :
Tal, antes de que a opaca nuvem rompa,
Do raio avisa a fulminante trompa.
LXII
Com violência arrancou ele infinita
A maior ponta de elevada roca,
Que ao jovem, sobre quem a precipita,
Urna é muita, pirâmide não pouca.
Com lágrimas a ninfa solicita
As deidades do mar, que Ácis invoca :
Concorrem todas, e o penhasco duro
O sangue que espremeu, cristal foi puro.
LXIII
Opressos tristemente os membros moços
Da fatal rocha vinda de mãos feias,
Os pés dos grandes vegetais mais grossos
Calçou o líquido aljôfar de suas veias.
Corrente prata enfim seus brancos ossos,
Lambendo flores e argentando areias,
A Dóris chega, que, com pranto pio,
Saudou-o genro, conclamou-o rio.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.