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Folia de Reis e um mergulho no Brasil profundo

Foto: Marcio Moraes
Inóspito. Ermo. Longínquo. Essas palavras já não servem quando chegamos à localidade Córrego do Barbosa – cinco horas de Vitória até Ecoporanga e mais duas horas de estrada de chão. Por fim, chegamos. Estamos na fronteira com Minas Gerais. Agora longe é a nossa casa. Longe é outro lugar. Chegamos lá. Estamos perto. Mas ainda não sabemos bem do quê.
Já é noite e o povo se ajunta numa das casas da região. Janta finalizada e começa a cantoria. É só o início de uma peregrinação diária da Folia de Reis da região. No comando, homens idosos, dois violões e uns tantos cantores. Quase todos negros ou quase negros ou quase índios ou quase brancos. Acompanham de longe dois jovens na percussão.
“Hoje vamos visitar nove casas”, diz alguém. Logo outra pessoa corrige: serão 13 casas! Termina de manhã. Como acordamos cedo e viajamos todo o dia, hesito se aguentaremos mais do que algumas casas. De qualquer forma, não temos opção: as distâncias são longas e ficaremos alojados numa das últimas residências visitadas. A única opção é seguir a peregrinação. E essa era exatamente nossa motivação para estar ali naquela madrugada de 6 de janeiro, dia de Reis Magos. Como eles em seu longo trajeto para encontrar o menino Jesus, caminharemos por toda a noite.
A data, que é celebrada em muitos países – em alguns deles é nela que se entregam os presentes e não no Natal – passa desapercebida para muitos brasileiros. Mas não para todos. As folias e outras celebrações ainda existem e resistem, sobretudo, em pequenas comunidades rurais. O encontro nacional de Folias de Reis em Muqui, com mais de 60 anos de tradição, é uma prova viva disso. As folias vêm dos rincões das pequenas cidades. Do interior do interior.
Nesse ano, a lua quase cheia ajuda a alumiar um pouco o trajeto. Muitas motos e uma caminhonete ajudam a transportar o grupo de cantores e os que acompanham a celebração. À porta das humildes e afastadas casas o grupo se aprochega, tendo como procurador Expedito, que conduz a bandeira. O primeiro toque é do lado de fora, pedindo no canto para que se abra a porta. Depois disso, como um ritual, lá de dentro se acende a luz, logo aparecem os moradores da casa, que convidam o grupo para entrar e tocar lá dentro. Enrolados na bandeira, os moradores recebem as bênçãos da folia em forma de canto. Logo, seguimos para um lanchinho oferecido pelos anfitriões: bolo, biscoito, café, chá, por vezes um vinho ou pinga. Mais de dez lanchinhos nos esperam essa noite…
Ao contrário das Folias que se reúnem no encontro de Muqui, no Córrego Barbosa, não há a vestimenta típica nem personagens como os palhaços. O grupo de músicos leva apenas uma camisa estampada, feita nos últimos anos por iniciativa de uma das netas de Dona Joana, 95 anos, responsável há muitos anos pela organização da festa.
Ninguém sabe dizer como começou. Todo mundo ali conhece a folia desde que nasceu. Me contam que o pai de Dona Joana era organizador da folia, que logo passou para o marido dela. Ela assumiu quando este faleceu. Hoje, “ruim da memória”, deixa a organização para seu filho Tula, o cantador Omero e outros integrantes da comunidade.
“Antes tinha mais gente, muito mais gente”, me dizem mais de uma vez. E tudo se fazia a pé.  A população da região foi reduzindo e também o compromisso das novas gerações. “Os jovens até vêm, mas muitas vezes mais pela festa, pelas namoradas”. Não é um problema local nem mesmo nacional. Em vários países há essa preocupação sobre as culturas populares e tradicionais num mundo cada vez mais urbano e globalizado. 
Mas onde se cultiva a terra, também se cultivam esperanças. Uma delas se chama Carlito. Com 21 anos, participa desde os 14 tocando os instrumentos de percussão, que ficam mais afastados para não “atrapalhar” a cantoria. Sempre gostou de ouvir a folia e um dia foi acompanhá-la e acabou ficando. Mesmo morando hoje na cidade, volta às comunidades na data para participar. 
E seguimos o trajeto….
Um momento especial da folia é a visita ao cemitério, que faz parte do itinerário todos os anos. São alguns minutos subindo por um caminho estreito noite adentro até chegar a um local sem muro. As lápides quase não se veem com a escuridão da noite e o mato crescido ao redor. Porém, ali descansam os que já não estão presentes em vida. Se foram, mas a folia continua a visitá-los em sua morada eterna. Diante da grande cruz de madeira que marca o local, se instala a cantoria por alguns minutos, com suas rimas e coros.
Logo cruzamos uma ponte de madeira sobre um pequeno rio. A mesma paisagem, mas estamos em Minas Gerais. “As últimas casas estão perto, vamos fazê-las a pé”. Àquela altura qualquer perto era longe. Entretanto, seguimos para as últimas visitas, com impressão que do lado de lá as casas eram mais modernas e menos rústicas que no Espírito Santo.
Frágil, Zé Correia, um negro de olhos profundos e um sorriso maior que o rosto, caminha com dificuldade, cruza ponte, sobe em moto, mas segue na cantoria.
Seu Quirino, elegante, posudo, é um dos mais antigos. Tem 74 anos e canta na folia desde os 10. Simpático e falador, revela que é analfabeto e que gosta de estar no mato, de plantar. Entende de cura. É benzedeiro, prepara garrafadas e um rapé que mistura várias plantas sanadoras. “De que vale ir pra missa no domingo e jogar veneno nas plantas na segunda?”, reflete com sua moral cristã-camponesa.
“Aprendi a cantar no meio do mato, imitando os passarinho”. Conta hoje que possui “três vozes”: uma muito fina, outra fina e outra mais grossa, que ele mesmo classifica como contralto, requinta e sobre requinta. Expressivo, cola o ouvido nos puxadores do canto e replica o coro, movendo a marcada mandíbula de seu rosto negro.
Chegamos
Já eram quase 6h30 quando finalmente chegamos à casa de Dona Joana, a parada final, 24 horas depois de termos acordado em Vitória para iniciar essa aventura. A última cantoria se dá frente a um altar simples mas cuidadosamente preparado, imitando as pedras da região.
Na cozinha estão espalhadas as partes do boi que servirá de almoço junto com feijão tropeiro e arroz. Há reza de um terço às 8h30 e também ao meio dia, marcando o encerramento. Vamos direto descansar e voltamos a tempo de acompanhar a segunda. Se na cantoria prevalecem os homens, no terço a grande maioria é de mulheres, que o rezam também em forma de canto. Há bastante gente pela casa e quintal, muito mais que durante a noite. Cumpridos os ritos, aos poucos o povo começa a dispersar e nós também precisamos voltar. Difícil expressar a gratidão pelo acolhimento tão leve e agradável, na típica simpatia e boa prosa que caracterizam mineiros e ecoporanguenses em suas fronteiras invisíveis. 
Nessa temporada, a festa foi estendida. Começou dia 27 de dezembro, parando apenas dois dias no Ano novo. Até o dia 6, foram nove dias visitando novas casas durante a madrugada, com o recorde de 16 casas numa mesma noite. No total, possivelmente mais de 90 casas receberam a folia.
Como disse, ninguém sabe como começou a tradição. Isso pouco importa. Talvez interesse a algum acadêmico ou governante. Mas para o povo que vive e constrói a folia, a preocupação é apenas de não deixá-la acabar.

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