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Friedrich Hölderlin e seus poemas da Era pré-romântica (parte – II)

Do período que vai de 1799 a 1802, na obra de Hölderlin, temos poemas como “A Terra Natal”, que traz em seu interior as dores de amor, a distância e a vontade de retorno, tal como nos versos que abrem o poema “De ilhas distantes,/ logo depois da colheita,/Volta alegre o marujo ao seu plácido rio;/Assim voltaria eu à pátria se tivesse/Colhido tantos bens quantos males colhi.” Esta primeira estrofe inaugura o conflito novo do poeta, comparado ao marujo que volta ao rio, assim quer Hölderlin voltar à sua pátria, e logo em seguida há sim a cisão ou junção, como queiram, do desejo vivo e morto de amor e dor, este paradoxo que não carrega só poetas, mas todo ser humano que entra em tais embates, com aviso ou desaviso, não importa. Segue o poema, com profunda nostalgia: “bosques/De minha juventude, prometeis, quando/Eu voltar, devolver-me a paz de antigamente?”, aqui há uma paz perdida, as ilhas distantes são o paraíso perdido de Hölderlin, sua juventude, o poeta morre um pouco, a saudade aqui não aparece como virtude de reencontro, mas como pura nostalgia de algo inatingível, pois a nostalgia é uma idealização, uma espécie de idílio da juventude que só é lembrada como algo bom, esquecendo-se de seu aspecto terrível e penoso, que todos sabemos.
 
A idealização de Hölderlin cabe aqui como uma ilha que só existe como paraíso perdido no seu poema e nas suas ideias. E o poema finaliza com: “Os que outorgam o fogo celeste,/Os deuses, nos dão também a dor sagrada.”. Aqui, o fogo, dádiva dos deuses, também será a fonte de dor da humanidade, como o pecado original de Prometeu, e não do homem adâmico, e neste contexto mítico, mais uma idealização nostálgica, consumindo-se nas “penas do amor”, como uma instância da “dor sagrada”, então a dor ganha caráter sagrado, aspecto criador, assim como o fogo praticamente criou o Homem como o conhecemos, e então a dádiva dos deuses, tanto quanto a alegria báquica, prepara o caminho posterior de toda a poesia de Hölderlin.
 
É o que já está patente no poema “O adeus”, uma das pedras angulares da lírica amorosa de Hölderlin, que é uma daquelas “pequenas peças” que conseguem expressar o destino completo do poeta, e isto condensado em quatro ou oito versos, em que aparece toda a história de um amor excepcional, e tão cedo repleto de melancolia, mas por seu caráter excepcional, um tipo de amor essencial, ou seja, não episódico, ímpeto no qual o poeta vincula seu ser à totalidade da existência, aos grandes e simples fenômenos da natureza. Neste poema é tematizado o momento em que a “lei de bronze” do casamento burguês, arte incompleta, vence a sacralidade do amor do poeta e sua Diotima (“nós/em cujas almas um deus impera”) desencadeando o sofrimento expiatório dos amantes, e que funciona como verdadeiro e doloroso testemunho de um tempo mítico e idílico em que não havia separação entre os homens e os deuses. Hölderlin coloca Diotima como mais um apêndice seu com o mundo do mito, de algo que existe só nas suas ideias, antecipando o karma comum do romantismo que surgiria logo a seguir no cenário literário e filosófico alemão.
 
”Meio de vida”, por sua vez, que é um dos textos mais traduzidos de Hölderlin. Antecipa todo um tempo vindouro, talvez por ser um poema moderno avant la lettre, um lampejo em toda a superfície romântica na qual Hölderlin passearia com sua Diotima mitificada. “Meio de vida” é mais uma curva nova e imprevista de sua trajetória, liberdade intransitada que só se repetiria a seguir já nos seus poemas da loucura. E, em “Meio de vida”, Hölderlin leva o leitor até a “ventura de adivinhar pouco a pouco”, como postularia Mallarmé tantos anos depois. Com prodigiosa economia de meios, desenvolvem-se as virtualidades do título do poema através de uma série de referências eminentemente objetivas a frutas, flores, lago, muros, bandeiras, que se revestem de uma aura alusiva tanto mais eficaz quanto menos imediata. Se trata, no poema, da referência simples e enxuta de toda a modernidade que nos tempos de Hölderlin nem sequer existia, uma vez que ainda estávamos na iminência do romantismo alemão, etapa histórica anterior ao fenômeno moderno, sendo este poema de Hölderlin um ato espontâneo, portanto, e não um plano novo para a sua poesia.
 
A TERRA NATAL
 
De ilhas distantes, logo depois da colheita,
 
Volta alegre o marujo ao seu plácido rio;
 
Assim voltaria eu à pátria se tivesse
 
Colhido tantos bens quantos males colhi.
 
 
 
Margens queridas que outrora me criastes,
 
Acalmareis as penas de amor? E vós, bosques
 
De minha juventude, prometeis, quando
 
Eu voltar, devolver-me a paz de antigamente?
 
 
 
Junto aos frescos riachos, onde vi as ondas
 
Brincando, e ao rio, onde vi barcos deslizando,
 
Logo estarei; e vós, montanhas tão fiéis,
 
Que outrora me amparastes, limites seguros,
 
 
 
Venerandos da pátria, da casa materna,
 
Dos abraços carinhosos de irmãos e irmãs,
 
Logo vos saudarei, e vós, sempre leais,
 
Envolvei-me para que, como enfaixado,
 
 
 
Meu coração se cure; mas eu sei, eu sei
 
Que penas de amor não se curam tão cedo.
 
Acalanto algum consolador, cantado
 
Por mortais, irá tirá-las do meu peito.
 
 
 
Os que outorgam o fogo celeste,
 
Os deuses, nos dão também a dor sagrada.
 
Por isso, ela dura. Sou um filho da terra
 
Feito, ao que parece, para amar, sofrer.
 
O ADEUS
 
(Terceira versão)
 
 
Se achávamos prudente e boa a separação,
 
Por que ela nos assustou como um assassinato?
 
Quão pouco de nós sabemos, nós
 
Em cujas almas um deus impera.
 
 
 
Traí-lo? A ele que foi quem primeiro nos deu
 
Vida e sentido? A ele que, gênio tutelar,
 
Sempre encorajou o nosso amor?
 
Eu jamais poderia traí-lo.
 
 
 
Crê, todavia, tratar-se de outra falta o mundo
 
Que se atém a outra lei de bronze, outro dever.
 
E, dia a dia, insidiosamente,
 
O hábito corrói a nossa alma.
 
 
 
Isso eu já sabia; desde que, informe e enraizado,
 
O medo veio separar os homens dos deuses,
 
Deve, expiando-o com seu próprio sangue,
 
Morrer o coração dos amantes.
 
 
MEIO DE VIDA
 
 
Com pêras douradas
 
E mil rosas silvestres
 
Pende a terra para o lago,
 
E vós, meigos cisnes
 
Bêbados de beijos,
 
Meteis a cabeça
 
Nas águas sóbrio-sacras.
 
 
 
Ai de mim: onde achar,
 
Se inverno, as flores, onde
 
O brilho do sol
 
E as sombras da terra?
 
Erguem-se os muros
 
Mudos, frios: tatalam
 
As bandeiras ao vento
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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